Número 44

02 de Novembro de 2024

NÃO ABRIR

A Esfinge

SEBASTIÃO CASANOVA


A Esfinge

Restaurante — Bar — Marisqueira


A tarde era quente.

O aqueduto sem água, no horizonte,

penetrava a penitenciária.


Atmosfera pouco densa e própria

Céu límpido.


Laranjas e rosas brancas

esborrachadas sobre o vento.


Copas alheadas

Uma dança de sombras pelos edifícios

altos e baixos

que abaixo dos olhos,

coqueteavam uma sensacional frescura

pura paisagem.


Domo excrescente.


Dormentes os dentes da frente e pálpebras cadentes.


No introito da garganta

espavento.


Não tardava, recordava noites

quentes com aquela que ainda não desamava,

por muito que disso se tentasse convencer.


Tacões em surdina e o ignito palmear das cinzas

que ainda lhe aqueciam o corpo em brasa,

gélido e demasiado grande,

maior do que ele podia ocupar.


Toni Tonitruante

era conhecido pelo temperamento

candidamente calmo,

(pelo menos, quase sempre!)


Socialmente

era habilidoso.

Um especialista em recursos humanos.


Ainda hoje, por vezes, se via obrigado a recorrer,

Mas quase nunca.

Fazia por não se acicatar.


Na sala do restaurante

escarpado sobre o mar

soavam cordas delirantes

de se ouvir cantar

aedos com dedos mágicos em frente

ao mar hipnotizante

que contemplava Tonitruante.


Trocara a vida ativa — importações exportações (e a importância de outras questões: negócios na construção, restauração e danças do ventre) —

Pela vida contemplativa, quiescente

A gerir a casa e a escrever secretamente

poesia

sob um pseudónimo feminino.


Decidiu aposentar-se no dia

em que fez de uma ravina um voo picado,

sentado ao volante

cor champanhe prateado

Cromados salivantes devoradores de toda a álea

Galho, arbusto, ninho,

pedra, pau e passarinho

Até à imobilização total…

Sem titubear

saiu pelo tejadilho (nesse momento, um ramo sulcou-lhe superficialmente a testa).


Resguarda-se hoje na escarpa

No restaurante famoso pela generosa carta:

Pesca fresca, crustáceos e bivalves,

Romarias de marisco e espumante de bolha fina,

Vieiras com espuma cítrica e manteigas de lavagante,

Rodovalho, linguado e pregado

(apregoado como o mais tenro!)


Porém, há por vezes um eco dos modos

antigos, refluentes e inadiáveis.

E ainda que egresso do seu habitat tonitruante, Toni,

tinha por vezes que regressar

à prática dos recursos humanos.


Nos primeiros cinco dias

certa alma insciente,

esperou pelo cair da noite

para lhe surripiar o economato.

Julgava certamente regalar-se no seu interior.

Mas foi no exterior — que ainda antes de feita a esquadrinha —

encontrou um bilhete:

ida e volta,

para o dia seguinte, no mesmo lugar

Onde eventualmente deu por si a espreguiçar.


Cinco dias depois,

batiam à porta

uma voz de punho cerrado,

tanto quanto a noite.


Àquela hora da madrugada:

– “Não terá por aí um cigarrinho que me possa dispensar?”

A fumar foi,

para o mesmo lugar

do anterior indivíduo

que deu por si estendido.


E ainda antes da devida parcimónia

com que se desfruta da brisa lunespumante

Após o fecho do restaurante

às escuras Tonitruante,

iluminado apenas pela brasa do seu charuto

avista um ser cambaleante,

ébrio, eructando, aligeirando

a urgência urinária,

na fachada do restaurante.


Admoestou-o

devidamente, e a vida continuou,

como habitualmente.



Tinha agora três novos amigos,

que por ele tinham

muita estima.