Número 38

2 de Março de 2024

CAIXA ALTA

“A guerra às drogas é pejada de conotações morais”

ANDREIA M. SILVA

Joana Canêdo

Foi preciso alguma coragem para afastar os medos daqueles que a viram crescer. Mas agora, iniciada a viagem pelo mundo das drogas e da redução de riscos, sabe o que a move: os direitos à liberdade individual, privacidade, educação e ao autoconhecimento. Ativista pelos direitos das pessoas que usam drogas, Joana Canêdo, de 31 anos, garante que esta viagem ainda agora começou.

— Como é que uma mulher nascida num meio conservador como Cernache do Bonjardim, Castelo Branco, se torna numa ativista pelo consumo de drogas?

— Há vários fatores que influenciam o meu percurso de ativismo: desde logo, o facto de ter feito Erasmus na Holanda, em Haia, enquanto estudava Ciência Política e Relações Internacionais, na Nova, em Lisboa. Este foi o meu primeiro contacto com uma política de quase-legalização para a cannabis, as smartshops, além do ambiente politicamente progressista (ainda que, culturalmente, os holandeses sejam bastante fechados no espectro dos seus consumos). Em segundo lugar, entendo que a proibição nos faz ficar fechados num armário psicoativo e que nos leva muitas vezes a julgar e estigmatizar quem abertamente diz usar drogas, ignorando que o uso de substâncias psicoativas faz parte das culturas juvenis e hedonistas. Por isso, e tendo crescido numa vila realmente alojada no coração interior e moral de Portugal, questionei-me durante a adolescência e no início da idade adulta sobre hábitos normalizados. Por fim, durante o mestrado em Economia e Políticas Públicas no ISCTE, o exercício de avaliar políticas públicas lançou-me nas políticas de drogas e surgiu a oportunidade de ir até ao Uruguai investigar a política de regulação do uso adulto de cannabis. Aí aprendi que a mais valia de uma regulação poderia ser acabar com todos os tabus, sentar famílias, incluindo crianças e jovens, amigos e comunidades na mesma mesa, perceber riscos e benefícios, e também entender que dizer “não” é o maior exercício de liberdade. Ou seja, o facto de ter tido acesso a informação privilegiada — e, neste sentido, maior liberdade de escolha e informação —, fez-me entender que a educação, em primeiro lugar, foi a chave para me posicionar abertamente quanto à defesa dos direitos das pessoas que, por diferentes motivos, usam drogas.

 — Quando se fala de consumidores de drogas, as pessoas optam por afastar-se – há estigma, silêncio e invisibilidade. Acredita que será possível mudar mentalidades?

— É importante lembrar que os comprimidos que se tomam para dormir são também uma droga de que muitas pessoas são dependentes. Lembrar que não há drogas “leves” e “pesadas” mesmo à luz da lei portuguesa. Se eu tomar be-u-ron em excesso terei uma crise hepática. A guerra às drogas é pejada de conotações morais, que nos levam ainda a ver como exótica, perigosa, excêntrica a palavra “droga”. Também é preciso ver que num universo total de pessoas que usam “drogas” apenas cerca de 10% têm usos problemáticos, e Portugal segue os parâmetros mundiais de acordo com os dados do próprio ICAD (antigo SICAD). O que acontece, por norma, é que a discriminação não se separa de vetores como a pobreza. Há uma guerra de classes nisto tudo também: isto é, uma pessoa socialmente integrada que recorre a cocaína e que tem um salário que lhe permite fazer um uso “invisível” não terá a mesma exposição que uma pessoa desempregada ou sem moradia que use cocaína – além de que os riscos de saúde também aumentam. Não podemos descurar das condicionantes sociais: a falta de acesso a habitação, as barreiras no acesso a cuidados universais, a ausência de comunidade e o isolamento social propiciam que as pessoas que usam drogas em contexto de rua sejam discriminadas e empurradas de esquina em esquina. Esta é ainda a realidade deste país. Se, por um lado, há dignidade no acesso a tratamentos e redução de riscos, são escassos os projetos que realmente geram comunidade — e essa é a chave para que uma pessoa não se culpe pelo seu consumo. Afinal, não temos todos uma carreira psicotrópica? Quando eu afirmo “Olá, sou a Joana e uso drogas”, estou a tentar que se perceba que isso não determina a pessoa que sou. Pelo contrário, o sentido é abrir caminho para que outras pessoas o façam e possam pensar ativamente sobre os consumos, erradicando o estigma e combatendo a discriminação.

— Mas se a droga destrói tantas vidas, não seria melhor combater o consumo, ao invés de o incentivar?

— Há décadas (desde a Convenção Única das Nações Unidas sobre estupefacientes de 1961) que a política de luta contra a droga é mundialmente adotada seguindo o objetivo ideal de um “mundo sem drogas”. Esta abordagem, no entanto, provou ser largamente ineficaz. O impacto das políticas proibicionistas tem afetado negativamente (e sempre desproporcionalmente) grupos de baixo rendimento, instigando o estigma, a discriminação, a necropolítica envolta. É importante perceber que aqui ninguém incentiva o consumo. Mas há uma coisa que dizemos muito em jeito de piada: quem ganhou esta “guerra às drogas” foram as drogas, cada vez mais disponíveis nos mercados. Defendo, neste contexto, o acesso à educação, programas de redução de riscos e minimização de danos para jovens e jovens adultos, defendo a educação entre pares. Defendo a profissionalização das carreiras de redução de danos, e defendo que o ativismo possa ser visto no âmbito profissional como um movimento social que também tem bases científicas para assessorar o desenho de novas políticas públicas e melhorar as que já estão implementadas. Defendo um mundo em que os problemas possam ser parte da solução: as pessoas que usam drogas devem ser ouvidas e envolvidas nestas discussões. Por fim, defendo a centralidade dos cuidados como princípio organizador das respostas e que um “futuro desejável”, no princípio e no fim, “não deixe ninguém para trás”, tal como estabelece a agenda 2030.

— Criou o coletivo “As Manas”. Como – e porquê – surgiu este projeto?

— O coletivo “As Manas” surgiu associado ao Grupo de Ativistas em Tratamento (GAT), sendo direcionado para o apoio específico a mulheres trabalhadoras do sexo e consumidoras de substâncias. Descobrimos a necessidade e vontade de juntar mulheres sobreviventes a múltiplas vulnerabilidades que também usam drogas. Um dos objetivos primeiros passou por desenvolver dinâmicas que instiguem o debate sobre as agendas da igualdade de género, igualdade de oportunidades e não discriminação em função da deficiência, raça, origem étnica, religião ou crença, idade, orientação sexual e outras interseccionalidades que envolvam as mulheres jovens e mulheres mais velhas, sobretudo utilizadoras de drogas e trabalhadoras do sexo. Nunca mais nenhuma “mana” esteve sozinha.

— Na sua tese de mestrado agradece ao seu pai, que foi até ao “outro lado do charco”, num momento difícil da vossa relação. De que forma lhe mostrou que vos movem as mesmas causas?

— Creio que os infinitos agradecimentos no prefácio da minha dissertação se devem ao facto de ter sido, várias vezes uma “sem-abrigo” científica e que já não teria dado nada por concluir se não fossem os meus pais. Sem financiamento e apenas com 22 anos é difícil, imagino, ver uma filha atravessar o oceano, e impossível que não haja um momento de dúvida da parte de quem nos quer: “será que volta bem?” Ao mesmo tempo, o reconhecimento da coragem e energia que me caracterizam (penso) fizeram o balanço desta aventura. A liberdade individual, o autoconhecimento e a ambição de tornar visível o invisível e legal o ilegal, trouxeram-me à minha atual carreira em redução de riscos, indissociável dessa viagem. Se por um lado foi mágico estar fora, também descobri a força das raízes que me movem neste enlace in-out e que tem muito dele, mas também do meu avô materno. Se ele gostava de ir apanhar frutas sazonalmente enquanto estudava, eu gosto de aproveitar os estudos para viajar e (re)conhecer o mundo. A próxima aventura talvez sejam as ilhas Maurícias, no contexto de doutoramento. Mas sobre isso, falaremos depois.