Ali – na zona íntima, há muito espaço para batalhas.
[verso do poema “E então, irrompeste sem aviso prévio”, do ucraniano Boris Khersonsky]
Nunca houve, na história do mundo, um conflito armado sem violência sexual. Face à barbárie, ao ódio e à desumanidade, os limites diluem-se, não há territórios sagrados, nem lugares impenetráveis. Vale tudo e quanto maior o horror mais espetacular é a guerra. A pilhagem dos soldados foi descrita na História, na literatura, no cinema, pelo jornalismo, em reportagens de guerra: o saque e a devastação, soldados em território inimigo a roubar e a destruir. A espoliação do outro, naquilo que é também a sua identidade – a sua casa, com os seus livros e as fotografias de família; o seu país, com os seus monumentos, História e referências. Mas mesmo quando imaginamos as piores pilhagens, dificilmente conseguimos ir para além do saque ao património e aos bens materiais e passar a fronteira do horror que permite que o corpo humano seja, também, território a desapossar. Não imaginamos possível incluir mulheres, transformadas em escravas sexuais, no espólio de guerra, ou as violações em massa na lista de métodos bélicos. É a humanidade a saque – o inimaginável.
A violência dos conflitos armados, que marcaram de forma incontornável o século XX, obrigaram a que a comunidade internacional reconhecesse a violência sexual como arma ou método de guerra. Quando o abuso sexual é um método de tortura, castigo e intimidação é uma arma de guerra. E quando a besta da guerra anda à solta, as mulheres são alvos fáceis. Há vários relatos que descrevem a brutalidade: assédio sexual, nudez forçada, violações, violações em grupo, mutilações, execuções, abuso de mulheres grávidas, gravidezes forçadas, prostituição forçada, escravatura sexual, famílias e soldados obrigados a assistir. Há violações por ódio, como vingança, e, outras, para celebrar a vitória. A violência sexual agride as vítimas e as suas famílias, semeia um medo e um ódio que continuarão a germinar muito depois do fim da guerra, acabando com a ideia de futuro. O seu impacto atinge a comunidade inteira e não se limita ao presente; os seus efeitos prolongam-se em stress pós-traumático, ataques de pânico, doenças sexualmente transmissíveis, gravidezes indesejadas ou esterilidade em consequência dos maus-tratos sofridos. Por vezes, suicídio.
A tolerância e o consentimento das autoridades militares, para quem a violência sexual era uma consequência natural e inevitável da guerra, levou a um silêncio cúmplice sobre o tema. A NKVD (Comissariado do Povo dos Assuntos Internos da URSS) não castigava os soldados violadores, a menos que estes apanhassem doenças venéreas. Durante mais de uma década, cerca de 200 mil mulheres, de países sob domínio imperial japonês, foram raptadas e colocadas numa rede de bordéis militares do exército japonês. Estas escravas sexuais, algumas com 10 ou 11 anos, abusadas pelo exército japonês durante a II Guerra Mundial, chamavam-se “mulheres de conforto”. A sua função era “distrair” e “motivar” os soldados que ocupavam parte da península coreana e da China. “One, two, three, four. Everynight we pray for war. Five, six, seven, eight. Rape, kill, mutilate” é uma lengalenga tradicionalmente entoada durante os treinos dos fuzileiros norte-americanos. “Blood, sperm and tears”.
No livro “Das KZ Bordell”, Robert Sommer aborda um tema ignorado décadas a fio: durante a Segunda Guerra Mundial, os nazis entenderam que os prisioneiros responderiam melhor aos trabalhos forçados se lhes fosse prometido sexo e transformaram prisioneiras em escravas sexuais. De acordo com a obra, primeiro relato detalhado deste capítulo tabu da opressão nazi, durante a guerra, as SS abriram dez bordéis nos campos de concentração, onde terão sido violentadas cerca de duas centenas de prisioneiras. As judias não eram recrutadas como prostitutas – as SS selecionavam apenas as mulheres que consideravam “adequadas” – e os homens judeus não eram admitidos nos bordéis, que serviam somente os soldados capturados, os prisioneiros políticos e outras pessoas, como ciganos e homossexuais, que também estavam nos campos. Segundo Sommer, a utilização de prisioneiras como escravas sexuais para outros prisioneiros foi um fenómeno exclusivamente nazi. Estas prostitutas forçadas, a maioria na casa dos 20 anos, recebiam mais comida e eram tratadas com menos severidade do que as outras prisioneiras. Em troca, tinham relações sexuais com prisioneiros selecionados, todas as noites, entre 20h e 22h, e nas tardes de domingo. Estes bordéis mostram uma outra dimensão da violência sexual em guerra: as próprias vítimas dos nazis eram transformadas em violadores de mulheres. E – cúmulo da perversão – nos bordéis eram mantidas as leis raciais: os alemães eram obrigatoriamente “atendidos” por mulheres alemãs; os prisioneiros eslavos apenas podiam estar com mulheres eslavas.
Parece evidente a relação entre o fundo patriarcal da guerra, bem como as ideologias racistas e as construções étnicas, e os elevados níveis de violência sexual neste contexto: a mulher é uma espécie de fiadora da pureza da raça, pelo que violá-la é conspurcar o futuro da etnia. Fruto da sua capacidade reprodutiva, a mulher é, ainda, garante de futuro. Reduzi-la a uma condição sub-humana, de objeto, é acabar com a esperança que a nação tem de renascer. Todos conhecemos a regra: mulheres e crianças primeiro. Elas devem ser defendidas e protegidas. Mas é também isso que as torna num alvo irresistível para a besta da guerra: o corpo feminino é, muitas vezes, uma representação simbólica da família e da comunidade. As mulheres são chão sagrado e o último território a invadir. Vê-las violentadas é a derrota mais humilhante.
O livro “Quando a primavera chegar”, que reúne 10 poemas escritos por poetas ucranianos, em tempo de guerra, abre com um poema de Boris Khersonsky, poeta, tradutor e professor de psicologia clínica: “E então, irrompeste sem aviso prévio,/ trouxeste à tua amante um bouquet/ de tanques, helicópteros, mísseis de cruzeiro em vez de flores,/ disseste-lhe: a culpa é tua, aqui está uma bomba, uma granada,/ Cabra, como te atreves a magoar o teu irmão mais velho?/ Isso não é um foguete de treino, podes ter a certeza disso./ Não estamos a entrar, estamos a divertir – cala-te, cabra./ Joelhos separados, sangue no lençol — é isso que é o amor./ Estamos a impor-te a paz, um jantar servido com um zakuski blindado”. (…) Empurraremos um tirano num preservativo transparente para dentro de ti,/ Temos a praça vermelha e faremos aí um desfile./ Anda, monta o teu ex-cavalo branco morto,/ Ele está coberto de sangue, vómito, sujidade e merda./ Estou a escrever merda e o corrector ortográfico corrige para metida./ Boa noite, camaradas – num lençol sujo, numa mortalha,/ No vosso país amado que contaminaram e conspurcaram”. As memórias da violência sexual na guerra ficam debaixo da pele das mulheres. São minas subepidérmicas colocadas com a mesma precisão com que se enterram minas terrestres em solo inimigo, numa guerra sem quartel. Continuarão ativas muito depois da instalação e serão detonadas sempre que alguém voltar a tocar naquele corpo, feito campo de batalha, para sempre tomado pelo inimigo. Um corpo que é uma nação inteira, contaminada, conspurcada. Um território íntimo, mas universal, onde a primavera não voltará a chegar.