Número 34

28 de Outubro de 2023

MÁQUINA DE NADEGUEIROS

A humanidade

LUÍS JANUÁRIO

Moro num sexto andar. Nada de especial. Mas é o prédio mais alto da rua. O vento sopra com mais força. As plantas, na varanda, agitam-se com violência. Um dia a oliveira foi derrubada, apesar do peso do vaso e da terra no vaso. Nos beirais da casa em frente vejo os pombos, e de vez em quando alguns corvos que alarmam os pombos. Também passam milhafres, em voo circular, mas ao escrever isto dou conta que a colónia de milhafres minguou, este verão. De manhã, ouve-se o chilrear de pássaros que desconheço e o morse da coruja. E em baixo, como num túnel a que tivessem retirado a cúpula, ou num canal de asfalto e calçada à portuguesa, passa a humanidade.

Esta noite a humanidade foi feita de caloiros obedientes e doutores compassivos. Os doutores mandavam os caloiros uivar. E eles uivavam.

Estou a usar o masculino de forma inclusiva ou genérica. Mas, para evitar a discriminação, direi que elas também gritavam, pois alguns gritos tão agudos e pungentes deviam pertencer a gargantas de mulher. E entre os mandantes, madrinhas ou padrinhos de praxe, haveria certamente mulheres,

de sapatos pretos, de estilo clássico sem apliques metálicos

(É proibido o uso de botins ou botas, luvas, pulseiras, brincos cujo tamanho seja superior ao lóbulo da orelha, piercings visíveis e outros adereços não autorizados pelo Conselho de Veteranos. Os brincos têm de ser discretos.)

Meias altas e pretas

Fato preto de saia e casaco cintado

Saia com macho, com uma mão-travessa acima do joelho, de quem a veste

Camisa branca e lisa, com ou sem punhos

Gravata preta e lisa

Capa preta, de uso comum, com ou sem cortes na parte inferior e com ou sem emblemas de pano na parte interior esquerda quando sobre os ombros;

O tecido das bandas do casaco será o mesmo que o do próprio casaco

A roupa interior e os bolsos não estão sujeitos a revista.

Também havia humanidade num morro das traseiras da casa, um Penedo com algumas árvores escondidas do progresso e um miradouro onde, em noites como esta, se vozeia e amontoam garrafas de vidro que os serviços camarários hão-de recolher, com aquela silenciosa compreensão que a cidade dedica aos botellónes estudantis.

Hoje ao princípio da noite, à porta de um hipermercado, numa praça de escritórios de empresas em insolvência, vi um grupo de raparigas trajadas. Estavam debruçadas sobre o passeio, como se vomitassem, presas nas saias apertadas. Duas delas, mais ativas, seguravam um garrafão de 5 litros de água que entornavam no passeio. Uma amiga com filhos juvenis explicou que estavam a preparar bebidas para o botellón.

— Que iriam misturar? — Ninguém perguntou. Numa esquina, uma rapariga da mesma idade das estudantes, lembrava a tradicional ocupação da zona, a partir daquela hora. Para saber o que bebe aquela parte da humanidade, podemos fazer uma breve investigação sociológica. São jovens da classe média, muitos deles estudantes, bebem durante a noite cerca de três litros de misturas alcoólicas ou um litro de destilados. Para saber exatamente o que estava a preparar aquele grupo, podia continuar a inquirir a minha amiga, mas receei ser demasiado intrusivo na relação que ela tinha com os hábitos dos seus filhos adolescentes e sobretudo, introduzir o tema fraturante do consumo de álcool, tabaco e erva nos adolescentes. Fiz por isso a pesquisa introduzindo a palavra botellón. E depois calimocho. E entre as milhares de entradas fiquei a saber que havia consideráveis variações nacionais e regionais, que uma percentagem de participantes (8,3%) declarava não beber, não fumar nem consumir ilícitos.

Aprendi duas coisas. Que ficaria na minha memória a imagem de duas raparigas ajoelhando na calçada tendo em frente uma outra, de pé, esperando um cliente e olhando-as de soslaio. Que não julgaria ninguém por pertencer aos 91,7%, nem ao grupo dos que bebem até à inconsciência. Mas ao escrever isto, a imagem que recupero, verdadeiramente, é de há vinte anos, nos arrabaldes de uma cidade de Espanha, Palencia ou Torquemada, onde num descampado, centenas de jovens bebiam em volta de fogueiras, ao som de uma coluna improvisada que despejava Livin La Vida Loca.

Também jantei numa mesa comprida. Ao meu lado esquerdo, quatro mulheres falavam animadamente. O tema era o assédio a que uma fora sujeita.

Entre as palavras mais perigosas do momento está a palavra assédio.

Assédio vai, certamente, provocar uma discussão com M, a minha amiga sentada à frente. Como a sopa, devagar, como se estivesse preocupado em não sorver, ou não fazer o ruído de quem sorve.

Por detrás de M. havia uma ruidosa mesa de homens, adultos jovens. Uma das minhas amigas festejava um aniversário. Quando cantámos o Parabéns a você, as mesas juntaram-se nas palmas ritmadas. Tentámos perceber quem eram os rapazes, que laço os unia. Alguns deles eram altos e bem constituídos. Perguntei-me se seriam sexualmente atrativos, mas as mulheres da minha mesa estavam em modo intelectual e deviam inibi-los na exibição dos sinais exteriores de sensualidade. Seriam seguranças da noite? Estivadores do porto de Leixões? PTs de body pump? Membros do Júri do Prémio literário José Rodrigues dos Santos? Seguidores de Luís Osório?

Levantei-me e perguntei-lhes, deixando no caminho um rasto de censura.

— Quem são vocês? O que fazem? São amigos?

Eles não percebiam as perguntas. Olhavam-me como crianças que não tivessem estudado a matéria e a quem faltasse o conhecimento mínimo para inventar uma resposta. Tentei ser mais objetivo.

— São de um clube desportivo?

— Eu sou do Sporting. — respondeu um.

— Mas jogam?

— Eu jogo em Leiria— disse outro, mesmo numa das cadeiras entre as quais me debruçava. E como o olhasse com simpatia:

— Já joguei no OAF, no União, no Luso.

Já tinha jogado numa quantidade enorme de clubes, tinha vindo ali ter com um amigo e depois ia deitar-se, que amanhã tinha jogo. Temi que ele me tomasse por um fiscal do clube ou que de alguma forma eu reprovasse a sua presença ali. Em volta ninguém prestava atenção à nossa conversa. Nem a coisa nenhuma. Ninguém parecia prestar atenção a nada, exceto um rapaz que tinha um tablet aberto e outros que faziam scroll. Enquanto isto, um matulão de quase dois metros levantou-se da mesa no que foi seguido por meia dúzia de outros. Voltei ao meu lugar. Não sabia quem eram, o que os tinha reunido nessa noite, que profissão tinham.

— Vão fumar — disse uma mulher da minha mesa.

Mas se iam, não voltaram.

Falámos então da Igreja Católica. Das bandas dos anos 90. Dos Stones ainda a fazer espetáculos ao vivo e se devíamos ou não reviver o passado, arriscar para com os nossos ídolos com Obituário já preparado nas redações

Esta semana foi a Louise Glück

e  Bobby Charlton, o futebolista. E Hubert Reeves, o astrofísico.

Sentimentos tão indignos como a comiseração, o contexto.

Entre as palavras mais perigosas do momento está a palavra contexto.

Não participo da discussão sobre se devemos ou não ir aos concertos do Sérgio Godinho, do Caetano ou do Chico. Por medo que surja a palavra contexto

Emocionamo-nos com a canção que ouvimos, ou com a ideia que formámos deste cantor, a sua luta contra a ditadura, a novidade que foi, a memória do que fomos, o dia em que ouvimos Pedro Pedreiro ou a Banda, o tempo em que limpávamos a alma a ouvir Que Será que Será?, o programa Os Cantores da Rádio, de José Nuno Martins, depois do 25 de Novembro, quando temíamos que as trevas estivessem de novo sobre o país e a voz clara do Chico voltou às telefonias?

O contexto é a História — dizem. Sem o contexto não podemos perceber o presente — dizem. A agressão russa à Ucrânia tem um contexto. A fundação do Estado de Israel tem um contexto. A radicalização islâmica tem um contexto. Cada cabeça cortada tem um contexto. Cada rocket, cada drone.

Cada contexto é um mas. Cada mas impede-nos de chorar um morto particular. Cada mas faz esquecer a enormidade de uma pessoa assassinada. Cada mas transforma o estado de luto num debate emocionado sobre o lado combatente em que nos situamos.

Sem a História não somos nada. Mas a História separa-nos tanto.

Falamos, então, de literatura. Mas hoje, como ontem, surge a questão:

— É possível a poesia depois de Auschwitz? — perguntou Teodoro Adorno, perguntou  Celan. Perguntou alguém à mesa.

A morte é um Mestre que veio da Alemanha, escreveu Paul Celan.

Mas a morte veio sempre de todos os sítios. A morte vem de onde os homens se tornaram mais poderosos.

Para os negros do Congo e de Angola do século XV e XVI, a morte era um Mestre que vinha do Norte.

Para os nativos americanos, a morte era um homem a cavalo que vinha do mar.

Para Roma, a morte eram os Bárbaros que vinham da Fronteira.

Para Bagdad, no século XIII e no século XVI, a morte vinha do Oriente.

Para os Arménios, a morte veio do ocidente e era um mestre otomano.

Para os Tutsis, a morte era um Mestre Hutu.

Todas as cidades do Mundo foram cercadas, saqueadas, incendiadas, destruídas, reconstruídas e depois de novo assaltadas. E os habitantes mortos ou tomados como escravos.

E continuamos a fazer poemas. A acreditar que o que estou a dizer, pode ser dito de outra forma. E que essa forma de dizer fará com que a humanidade pareça algo em que se possa acreditar. Que os 8% de gente simples e boa, sobreviventes do grande colapso, mantêm a esperança da humanidade e saberão conviver com as outras espécies e com a natureza.

Não falamos de contexto, não falamos de assédio, não usamos palavras como cancelamento, Ucrânia, Rússia, Israel, Palestina, feminista, consumos da juventude.

Somos como a mesa ao lado, unidos pela nossa humanidade, mesmo que esta se resuma a festejar o aniversário, recitar a litania que incita a esvaziar um copo até ao fundo, acreditar que oito por cento salvarão a humanidade, cristãos nas catacumbas, vanguarda impoluta, artistas que a Arte é que nos salva.