Número 31

29 de Abril de 2023

DOIS PARES E MEIO DE ASAS

A mulher, eloquentemente marcada a sangue

MARTHA MENDES

Todos os meses/ esta comunhão/ da alma/ e do corpo;/

este sentir-se objecto/ de leis naturais / fora de controlo;/ o cérebro cedendo/ o lugar ao ventre.

Excerto do poema “Menstruação”, de Gioconda Belli


Há uns tempos, um homem perguntou-me em tom desafiador: “O que é ser uma mulher?”. Confessava que não sabia a resposta – afinal, ele é um homem – mas achava que eu devia saber. A quente, não consegui responder. Ele queria uma definição universal e eu, na altura, não a encontrei. As mulheres são tantas coisas, têm tantas camadas, que me pareceu impossível chegar a uma solução única, que servisse todas as variantes. Pensei que haveria várias respostas possíveis para esta pergunta – e todas estariam certas. Mas há umas semanas encontrei-me com alguns livros de Annie Ernaux, autora que me tem mantido presa, num apertado abraço de sororidade. E lembrei-me da pergunta desafiadora: O que é ser uma mulher? Foi, então, que encontrei a resposta, numa memória antiga, dentro de mim, a correr-me nas veias – e no corpo todo. E, curiosamente, a resposta foi-me oferecida por um homem. Alguém que partilhava com Ernaux o desejo de fazer cumprir a vida através da escrita: José Cardoso Pires.

Estávamos em 1991 e faltava mais de década e meia para o referendo que viria a legalizar a interrupção voluntária da gravidez, em Portugal. Nesse ano, Cardoso Pires foi entrevistado por Artur Portela, para um livro (Cardoso Pires por Cardoso Pires), uma entrevista que eu só viria a ler quase duas décadas depois e que foi, em boa parte, responsável por me ter apaixonado pelo homem, depois de me apaixonar pelo escritor (um privilégio, pois nem sempre é possível amar os dois). Depois de abordar a questão da identidade, como tema central dos livros do autor, Artur Portela perguntou a Cardoso Pires sobre a centralidade das personagens femininas na sua obra. O escritor respondeu-lhe, rápido, brilhante: “a mulher tem, por natureza, um realismo muito mais forte do que o homem, por muito controverso que isto possa parecer. Mas tem, para mim tem. O seu próprio percurso biológico é, já de si, perfeitamente demarcado, eloquentemente demarcado, diria mesmo, em todos os capítulos do seu corpo. Menstruação, desfloramento, maternidade, menopausa, tudo aparece com uma precisão por vezes dramática e registada a sangue”. Cardoso Pires usou esta imagem, fortíssima, da marca de sangue que as mulheres arrastam consigo, como um rasto que não podem apagar, e comparou-a com a realidade dos homens, para quem as transições decorrem de forma muito mais abstrata: “no homem, a puberdade é normalmente uma viragem incolor e a andropausa vem diluída em indefinições e metáforas.”

Nas últimas semanas, li três livros da Annie Ernaux sobre a experiência feminina – em comum, todos têm este indelével rasto de sangue: “Memória de Rapariga” conta-nos a primeira experiência sexual da escritora, aos 23 anos; “O Acontecimento” fala-nos da sua experiência de aborto ilegal e clandestino; “O Jovem” é a história de uma mulher na menopausa – ela própria – que se envolve com um homem 30 anos mais novo. São fases diferentes da vida, mas há um fio de sangue que atravessa os três acontecimentos – incomparáveis entre si, mas todos profundamente marcantes na construção da mulher e da escritora que os relatou. E escritos a sangue. Em comum, os três eventos têm o que Cardoso Pires identificou, com o seu treinado olho de observador e interrogador do mundo e do Outro: uma precisão por vezes dramática e registada a sangue.

O sangue feminino. Vinho e seiva ancestral, mas também veneno. Que nos engravida, mas, garantem os antigos, mata as plantas, azeda a cerveja e estraga o vinho. Um sangue que corre no mundo, como água, mas é sussurrado – não deve ser nomeado, nem exposto. Devemos manter as mulheres longe do banho: é um sangue que não se deve diluir em água, que não devemos lavar. Reza a lenda que as mulheres que vivem muito tempo juntas menstruam na mesma época, regidas por um relógio universal que sincroniza mulheres diferentes em ciclos iguais. Mulheres que sempre souberam cozinhar a vida mas, quando menstruadas, reza a lenda, não conseguem bater claras em castelo. Não podem amassar o pão, que tira a fome – e o pecado – do mundo e precisa de mãos limpas. Os bolos não crescem. A maionese não liga. Tudo por causa do sangue que separa as meninas das mulheres, as férteis das inférteis, as novas das antigas. O mesmo sangue que mancha os lençóis usados por uma amante virgem. O sangue onde mergulham os bebés que não chegam a nascer, afogando em culpa as mães que não os desejam. A seiva que une as mulheres de todo o mundo. Um sangue que corre, mais escuro do que o vinho, como a água de um rio que o mundo não consegue parar.

O que me une a todas as mulheres, de todos os lugares, mesmo as que nunca conheci, as que não se cruzaram comigo, as que não habitaram o meu tempo, mesmo aquelas de quem me afasta a história, a cultura, a localização geográfica ou a idade, é este rasto de sangue uterino – de fertilidade, de vida e de morte. No livro “O Acontecimento”, Ernaux relata que enquanto a fazedora de anjos a despia, para dar início ao aborto, pergunta: sangrou muito quando foi desflorada? Terá sido a única pergunta que a mulher, que não fazia perguntas, lhe fez. Uns dias depois, quando dá entrada no hospital, em estado grave, fruto deste aborto ilegal, foi destratada pelo jovem cirurgião a quem implora que lhe explique o que estava a acontecer. Ele postou-se em frente às minhas coxas abertas, a gritar: “Não sou o canalizador!” Foram as últimas palavras que ouvi antes de desaparecer na anestesia. Na manhã seguinte, o jovem cirurgião estava muito incomodado, envergonhado por a ter tratado daquela forma. Teria, entretanto, visto o cartão de saúde de estudante da paciente. Ele estava apenas envergonhado por ter tratado – uma vez que não sabia nada de mim – uma estudante da faculdade de letras como uma operária têxtil ou uma vendedora do Minipreço. A enfermeira de serviço repreendeu-a. Na noite passada, porque não disse ao doutor que era como ele?

Ernaux não respondeu, nem à enfermeira, nem ao leitor. Mas eu arrisco uma resposta, que fica por conta da que não consegui dar à pergunta desafiadora. Há respostas que demoramos a encontrar, ainda que elas estejam dentro de nós, a correr-nos nas veias – e no corpo todo – como um rio. Um rio de sangue. Na noite passada, porque não disse ao doutor que era como ele? Porque ela não era como ele. Ela era como elas, todas elas, de todos os tempos e lugares – as que se unem por um indelével e ancestral rasto de sangue.