Dizem que foi de injetar mescalina que Sartre ficou com uma náusea permanente[1]. Quem já experimentou mescalina facilmente deduz que injetá-la não parece boa ideia. Náusea permanente não é bom, mas também não é mau. Aliás, esse é o problema da náusea: além de ser difícil explicar a terceiros se nunca a tivermos experimentado, é difícil de visualizar, de narrar, e impossível de figurar – a náusea não tem corpo nem cara.
Não li o livro da náusea e não sei de que se trata. Só sei que a náusea, em forma de livro, me desperta interesse. Se alguém escreveu um livro sobre isso deve-o mesmo ter chateado a vida inteira, ao ponto de fazer vida disso — duma sensação de vida. Não deixo de sentir empatia com quem sinta náusea. Aliás, o pior é que sinto mais do que empatia. Eu sinto náusea. Não falo de problemas no sistema vestibular e de me gregoriar toda em barcos durante visitas às baleias nos Açores. Falo de que algumas pessoas me provocam mal-estar, sendo que não é necessariamente mau, nem são necessariamente más. Só nauseantes.
O melhor livro que li sobre este assunto é o The man in the maze, de Robert Silverberg (1968). Adorei o livro. O argumento, como o entendi, é o seguinte: Richard Muller, uma pessoa “de sucesso”, é um diplomata intergaláctico. É conhecido por ter superpoderes comunicacionais. É capaz, usando a linguagem matemática e outras “universais”, comunicar com seres alienígenas com quem mais ninguém consegue.
Muller é enviado a uma comunidade de alienígenas problemática. Como gesto de boa vontade, aceita submeter-se a uma cirurgia em que lhe mudam o cérebro. Aparentemente ele não nota nada. Corre tudo bem e volta para casa, para a Terra.
É então que acontece uma coisa estranha. É completamente insuportável estar à beira dele. Nenhum ser humano o suporta. Não é por nada em particular. Não é nada que ele faz nem deixa de fazer; não é nada comportamental. Não é nada observável. Não é nada moral nem ético nem estético nem poético. Mas é universal para a espécie humana. Todas as pessoas ficam nauseadas. Como se ele fosse uma espécie de antena transmissora de todos os sentimentos negativos do universo. “Eu não consigo” — diz uma mulher enquanto tenta fazer amor com ele — “eu não consigo estar perto de ti”.
Muller exila-se num labirinto — um desafio cósmico feito por uma civilização extinta que lhe confere proteção contra humanos — a que ninguém vai. Na verdade, ele parece ir lá para morrer ou safar-se, o que acontecer primeiro. Até que uma situação inusitada faz os seres humanos irem lá buscá-lo. Há uma civilização na galáxia que precisa novamente das suas capacidades diplomáticas. É uma civilização incapaz de nos ver como seres dignos de respeito. Se lhes mostramos que somos “gente”, aparentemente deixam de nos chatear, ou pelo menos, é essa a esperança. Mas sem lhes mostrarmos que somos “mais do que formigas”, cultivam-nos e manipulam-nos através de ondas eletromagnéticas e escravizam toda a humanidade, porque não nos reconhecem inteligência.
A salvação da humanidade passa a ser Muller no labirinto. Os seres humanos dignos vão lá buscá-lo, enganam-no com a promessa duma cura para ele voltar, ele aceita mais ou menos, e comunica com estes seres — que lhe reconhecem e absorvem toda a náusea. Ele não nota diferença nenhuma mas, quando regressa, é-lhe impossível suportar a humanidade, e regressa para o labirinto.
Sempre adorei esta história, mas nunca tinha pensado que é a melhor descrição de empatia.
A empatia é uma coisa muito mal-entendida.
Diz-nos o melhor da neurobiologia que nasce duma resposta aversiva de neurónios que ativam sensações de náusea.
Esta náusea contagiosa liga-nos com os restantes seres humanos.
Quando quebrada, produz alienação — a sensação de estar na presença de aliens.
É muito estranho estar perto de alguém que parece humano mas não tem empatia. Alguém quase-humano.
A sensação de vazio no outro é nauseante.
É como se toda a negatividade se incorporasse.
Ao mesmo tempo, é produtiva.
Esta náusea existencial obriga ao reconhecimento duma presença diferente.
Mesmo insuportável, mesmo inenarrável, mesmo invisualizável, a náusea obriga ao reconhecimento do outro.
Põe-nos fora de água. E um peixe fora de água pode tocar a terra, mas não a pode suportar durante muito tempo.
[1] https://www.theparisreview.org/blog/2019/08/21/sartres-bad-trip/