Número 44

02 de Novembro de 2024

JE SUIS UNE CHIENNE

A palmeira que não tem nada a ver com o assunto

Vários

Subo estas escadas e o olhar levanta-se para a casa abandonada onde em tempos funcionou uma empresa de produtos de higiene, o Laboratório Lux. Houve um crime. Mas foi há tanto tempo que já prescreveu, na memória. Ao lado da casa, inseparável na imagem, há uma palmeira, como as do Jardim Botânico do Rio. Mas de facto já não pertence ao terreno da casa.


Sou atraído pela palmeira que não tem nada a ver com o assunto. Certamente que não foi ela a perpetradora do crime esquecido, mas quem sabe ainda se lembra. Não sei a longevidade das palmeiras, mas poderá muito bem ser a melhor testemunha da história.


Se entrar e percorrer o corredor, encontrarei uma mesa de pinho com uma máquina de costura em cima. Não o faço por temer que já nada funcione e seja só um conjunto de artefactos, achados a que outro alguém atribuiria funções honoríficas. Os resquícios do trabalho esfumam-se muito antes das suas obras.


Também me acontece sentir uma vibração algures. Julgo ser o telemóvel ou algum relógio de pulso que não uso há anos. Mas não. Algo lateja, pulsa, soa, persegue-me. Espero e nada é, nada acontece.


A luz cai sobre as escadas formando um teclado que inicia um ritmo nervoso. 

Nas mãos do rapaz a arma abre a noite para lhe examinarmos as vísceras.

No rio um abandono movimenta-se fugaz.


Era calmo. Tinha uma ambição, ficar-se pelos mínimos. Uma vida inteira mínima, na profissão, na família, no amor conjugal e extraconjugal (palavras do entrevistado). Hediondo e Crime, o título batido na primeira página, seguido de consumado, tresloucado, passional, como salpicos ao longo do corpo da notícia com fotografia junta das escadas, local da fatídica ocorrência, ainda sem vislumbre da palmeira, pois, porventura, no ano que corria, seria ainda menor que mínima.


Toma, este é o meu lugar, o que sobe as escuridões

em direção à tua coisa, deixando-me,

ou a alguma escada menos corpo,

no seu tangível.


Também eles envelheceram, os corpos,

também, como eu, estrangeiras.

Anoiteceu, ao longe afastam-se lugares, provavelmente os nossos,

e, à nossa volta, os nossos passos desvanecem-se como terras desabitadas.


O tempo transforma as casas em paredes fechadas sobre espaço vazio, separa os terrenos, como separa as famílias, à medida que as gerações se vão sobrepondo. Talvez a história por detrás do crime tenha começado com uma separação, um espaço vazio que a loucura ocupou. Com o tempo tudo prescreve, até a maior das dores, o maior dos horrores. Por agora, ainda há uma casa abandonada, que em breve será uma ruína e, depois, só um terreno tomado por silvas e passado. Por agora, ainda há memória.


Não me lembrava da palmeira. Fui procurar imagens antigas da casa e em nenhuma das vistas se vê a palmeira. Numa das mais antigas, vê-se um cedro, imponente, que os donos mais recentes mandaram abater por lhes lembrar a morte. Mas acabei por encontrar uma fotografia que me perturbou: só lá estava a palmeira. Da casa, nem sinais.


[A palmeira que não tem nada a ver com o assunto foi escrito, em simultâneo, por API, CJ, DB, FF, HB, LJ, LLP, MM e RAS, a partir do texto e da fotografia do início.]