Número 14

13 de Novembro de 2021

BOLSA DE VALORES

A sombra da Terra

HÉLIO BARATA

Começado a construir em 1883 e terminado em 1956, o quebra-mar teve como objetivo melhorar as condições de navegabilidade da infraestrutura portuária que, para quem atravessa a urbanização de baixa densidade vindo do aeroporto, parece desproporcionada em relação à cidade. Apesar de se tratar de um porto lacustre, as ondas instruídas pelos ventos que varrem as planícies limitavam o seu uso, implicando interrupções e atrasos frequentes no transporte dos minérios e cereais que davam à cidade a razão de existir numa geografia tão remota, tão inóspita. O quebra-mar criou assim uma zona de águas calmas, cuja utilização nunca foi tão diversificada como teria sido possível em latitudes balsâmicas, que se abre ao resto do lago por duas pequenas barras.

Na verdade, a riqueza da cidade, resultado da amálgama de duas mais pequenas, foi oscilando mais ao sabor do valor de mercado das matérias-primas do que da proteção dada ao porto pelo quebra-mar. Neste momento, por exemplo, toda a região atravessa uma fase de crescimento descrito por muitos analfabetos como exponencial, graças ao aumento da procura global por qualquer coisa passível de ser transformada e metida numa embalagem com sistema de abertura difícil. Contudo, os bens são hoje cada vez menos escoados através dos Grande Lagos, para o Atlântico, e cada vez mais para a costa oeste, por vias ferroviárias e rodoviárias que os conduzem ao Pacífico. A reconfiguração das relações e espaços de poder a nível global que arruinou a frente aquática não teve um impacto negativo sobre a atividade económica da cidade, antes pelo contrário.

No entanto, esta decadência trouxe consigo oportunidades, como é próprio das desgraças de uns. O longo quebra-mar, que para quem está de pé em Marina Park se desenha como uma reta de pedra interrompida pelas duas barras supra, sugere a emersão (por assim dizer) e consolidação de uma metáfora até hoje reprimida. Há agora mais ocasiões em que, quando ambas as zonas do lago estão calmas e espelham o céu, aquele risco imposto à paisagem pela obra de engenharia parece acrescentar ao horizonte sensível (o do costume, imaginário e inatingível) um novo horizonte, o do quadro normativo em vigor, construído e mantido por financiamentos estatais e privados. É o horizonte da conformação que nos é permitido desejar, a linha bem real das possibilidades que nos são entregues por uma história de turbulências. Em suma, um horizonte que nos atinge e nos mantém com os pés bem firmados no chão.

Neste momento preciso, o quebra-mar corta o plano de água onde se reflete, na agonia do arrebol, a sombra que a Terra projeta no céu a nascente: uma sequência de acontecimentos inevitáveis de natureza variada, uma cadeia de valor determinística dependente dos humores do século, aquilo a que alguns já chamaram sentido. Um navio que saia do porto para a noite do norte em direção à barra mais próxima, atravessando o horizonte artificial e despindo-o da sua roupagem de infinitude, acentuará ainda mais a evidência de que a fragilidade do edifício socioeconómico e a sua inescapável dependência de fatores incontroláveis pela pequenez do engenho humano é tudo ao que podemos almejar. É uma hora de artifício e desistência. Aqui está, pois, um sítio ainda habitável onde se pode contemplar a demonstração de que, numa sociedade anónima e de responsabilidade ilimitada, não há lutas que valham a pena travar, há apenas o curativo que uma mão tem para o golpe dado pela outra. Só por isto, aquele litoral merecia ser objeto de uma obra de requalificação orientada para as deslocações de lazer.