Tinha acabado de chegar à Bolívia pela linha férrea que começa em Corumbá. Daqui, atravessaria as montanhas até Sucre. Uma viagem de cerca de trezentos quilómetros e dezasseis horas. Uma viagem que descrevi, sucintamente, através de um pequeno texto e dez fotografias, e que revisito mais de uma década depois, onde desvelo, quiçá pela primeira vez, a minha estranheza no mundo. Nessa altura, estava já há mais de um ano fora de casa. Tinha abandonado o Brasil, onde tinha vivido os últimos doze meses. Durante esse período, o primeiro longe de casa, percebi o que é despir a roupa e sentir que o ar é uma coisa contínua entre a pele e o mar, e a humidade um indício desse materialismo latente, essa correspondência primordial entre o que suamos e o que nos molha. Contudo, e em jeito de retrospectiva, foi na secura da montanha que um acontecimento me ferira para sempre, num silêncio que guardei atrás de todos os outros, e os contaminou de uma consciência desmedida. Lembro-me de descer do velho autocarro, exausto, olhando em redor, para me situar no mundo. Dirigi-me, à bagageira, esperei que o motorista a abrisse para levantar a minha velha mochila de trinta litros. Foi então, que no meio de todas as bagagens, de todo aquele material sobejo, se ajeitam quatro pessoas. Uma mulher e três crianças semicerravam os olhos à medida que a porta levantava. Uma mulher e três crianças tinham passado dezasseis horas no lugar da minha mochila de trinta litros. De repente, o meu cansaço concentrou-se nos olhos. A garganta e as mãos cindiram em dois corpos distintos. A primeira, uma fenda aberta, à mercê do porte das montanhas e dos rios que lá nascem e correm, livres, engolia o frio desse curso. As segundas, expeditas, ajudavam a retirar as malas e as crianças, pousando-as no chão poeirento, prontas para seguir viagem. E a viagem prosseguiu, no regresso a casa e aos objectos que pousamos nela. Nas migrações pelo mundo Ocidental, usufruindo do sistema de triagem dos corpos e do privilégio que é ter nascido no lado certo da fronteira. Nas perambulações do Sul e do Oriente, aprendendo que há um filão de matéria que nos sustenta, feridas abertas sob os grandes céus, onde os sorrisos rasgados não chegam para devolver toda a carne que alimentou os exploradores. A viagem prossegue, ainda, na atenção que prestamos à violência na qual assentamos o nosso conforto. Por vezes abrupta, interrompendo-nos o jantar com estrondo. A maioria das vezes, lenta, silenciosa, e mesmo aliciante. Uma violência que reside nas coisas e na forma como essas coisas se organizaram para serem mais livres que nós ― há muito que sabemos que as coisas já não são coisas quando as apelidaram de mercadorias. E que essas mercadorias adoptando para si os valores do mundo, se tornaram os habitantes mais vistosos da cidade, a voz que veste as ruas, aquilo de que se fala, o espaço metafísico onde as coisas podem falar,1 enfim, edificando uma dimensão moral e política. E o problema, não sendo essa presença fundamental, mesmo poética, com que os artefactos enriquecem a nossa existência, é sim, o preço que deixamos que os outros paguem para que vivamos, nós, repletos de extensões de nós. O que esta viagem iniciou foi o centrar da atenção aos diferentes tipos de habitantes que coabitam nas injustiças da sociedade. Aqueles cujo valor opera nas entranhas, amantes e sofredores, sem noção do seu papel na terra, encarnando a vida despidos e morrendo amortalhados pela vida nua. Há os que, como eu, se acomodam, pacientemente, no espaço que sobra entre as vitrines e a via pública, cujos dias são passados num pacto de vergonha perante as regalias pré-consagradas, comendo e bebendo o mundo infinito e, ao mesmo tempo, tão estreito, lidando com os objectos e os seus cantares nesta azáfama que se tornou viver entre os canais de troca, a circulação, a fluída permuta entre o corpo e o horizonte, e aqueles, que estando excluídos do circuito horizontal, do aparato festivo com que nos acicatam a vida, dessa liberdade imensa de convívio entre os indivíduos e as coisas, se alheiam do espectáculo e do fetiche, tornando-se, eles mesmos, o produto, o artefacto e o desejo, lançando-se no mar e na morte, subvertendo as regras de um jogo que aprenderam a ver de fora, fundindo a história e o contador da história, a pele e a roupa e a carcaça. Seja ela a mulher que viajou com as três crianças no porão de um autocarro; seja ela a criança detectada pelos raio-X dentro de uma mala no posto fronteiriço de Ceuta; sejam os dois homens do Indostão que revezavam o sono na bagageira do táxi que lhes paga a dívida aos seus traficantes; sejam as centenas de milhares de pessoas que são acomodadas em contentores de obra nos campos de refugiados espalhados pelo planeta, todos eles perceberam que existe um mundo encantado, gerido pela moral das coisas ― a mercadoria ― e que, nesse encantamento, existe sempre um lugar especial para ela. Perceberam que as mercadorias se tornaram a figura extrema do bem, o último nome que o Ocidente deu ao bem.1 E uma vez impedidos de desequilibrar a balança do privilégio, condenados pertencer à parte nua do planeta, aquela a quem despem de tudo o que é precioso, transformam-se, eles mesmos, nesse bem, despem-se deles mesmos, entregam o corpo à embalagem, esperando, assim, existir no mundo da mercadoria, podendo, por fim, circular ― fazer parte da troca.
1 Emanuele Coccia, O bem nas coisas.