Até ao Osso

26 de Agosto de 2023

A valsa que carrego no peito – sobre boxe e t-shirts de boxe

ADOLFO CABOCLO

My writing is nothing, my boxing is everything”.

Ernest Hemingway

O boxe surgiu em minha vida pela narrativa de Hemingway. Sua palavra escrita a anunciar o flanar pelas ruas de Paris em “A Moveable Feast” (1964).

Seis anos atrás, em um café no centro de São Paulo, meu telemóvel parece ter escutado meus comentários sobre o esporte do escritor. No intervalo da leitura, espiei as redes sociais e por lá apareceu um anúncio de aulas de boxe em um local próximo a minha casa.

Era um tempo em que eu sentia algum preconceito relacionado a ferocidade dos esportes de luta. Saber que um dos maiores escritores estadunidenses praticou a “nobre arte” – e, nem por isso, esta prática o fez menos interessante. Muito pelo contrário – foi o gatilho que eu precisava para uma revolução no meu corpo, até então, exclusivamente académico e boêmio.

Me inscrevi nas aulas de boxe em maio 2017 e nos primeiros meses perdi mais de dez quilos. Neste processo, também entendi o tamanho do meu corpo.

Vi no boxe um tipo de valsa, uma dança. Um acordo entre ritmos onde o principal feedback é a pulsação do som dos socos – nada mais parecido com o batucar de um pandeiro de uma roda de samba do que uma sequência de rounds no punchball: um, dois, três, bate. Um, dois, três, bate. Um, dois, três, bate…

Também notei uma extrema semelhança com o jogo de xadrez, pois um pugilista nas cordas lembra um cavalo nas margens do tabuleiro. Um lutador bem postado no centro ringue, muito se assemelha com peões e outras peças a ocupar o centro do jogo, a encurralar seu adversário.

O boxe também me trouxe uma ideia de disputa em igualdade. No ringue, cheguei a acreditar em meritocracia, uma vez que é uma disputa entre duas pessoas, apenas a trajar calção e luvas, exatamente com o mesmo peso. Não demorou muito para eu vir a duvidar disso.


I ain’t got no quarrel with them Vietcong. No Vietcong ever called me nigger”.

Muhammad Ali

Minha ideia de meritocracia no boxe definhou quando comecei a tomar termogênicos, proteínas e suplementos indicados pela minha nutricionista. Também foi uma fase em que fiz algumas sessões de terapia do esporte para ficar psicologicamente mais estável durante a luta.

Não demorei para perceber que meus adversários não tinham nada disso: apenas trabalhavam em empregos de um país com desigualdades sociais abissais como o Brasil e, antes dos treinos, comiam uma paçoca e bebiam um café cheio de açúcar para dar energia. Apesar de eu subir no ringue apenas com minhas luvas e bermuda, eu trazia vantagens em uma disputa que não deveria ter vantagens.

O boxe abriu meus olhos para questões sociais e políticas, e foi assim que Muhammad Ali tornou-se um dos meus maiores ídolos. Devorei filmes como “I am Ali” (Clare Lewins, 2014) e livros como “The fight” (Norman Mailer, 1975).

Com Ali entendi melhor a importância da representatividade. Sua luta que iria muito além de “flutuar como uma borboleta e ferroar como uma abelha”. Sua amizade com Malcon X, tudo o que representou seu confronto no Zaire com George Foreman, em 1974, e o tempo que foi afastado do esporte por se recusar a ir ao Vietnã, quando fez palestras em universidades como, por exemplo, Harvard e MIT.

Com isso passei a estudar histórias como as de Johann Wilhelm Trollmann, o Rukeli – pugilista cigano que foi perseguido pelos nazistas nas décadas de 30 e 40 e foi pioneiro no jogo de pernas contemporâneo. Foi acusado na época de lutar de forma “afeminada” – e toda a narrativa do boxe cubano – uma pequena ilha no caribe que se tornou uma potência mundial nos ringues.

Assim, o boxe se tornou mais que um esporte para a narrativa da minha vida. Eu teria que carregar esta narrativa no peito.


“Everyone has a plan until they get punched in the mouth”.

Mike Tyson

A primeira t-shirt que ganhei relacionada ao boxe foi uma imagem de Andy Warhol e Jean-Michael Basquiat, vestidos de pugilistas, em um cartaz a anunciar a exposição dos artistas, em setembro de 1985, em uma galeria na big apple. Nesta época, o mundo da arte já tinha flertado várias vezes com o do boxe – o caso mais emblemático, talvez seja a luta do performer Arthur Cravan com o então campeão dos pesos pesados Jack Johnson, em 1916. O cartaz da luta está no museu Reina Sofia, em Madrid, e pode-se encontrar facilmente o vídeo da luta na internet.

Posteriormente, eu compraria mais duas peças relacionadas à “nobre arte”, estas com os posters das lutas entre Mike Tyson e Evander Holyfield – em 1996, quando aconteceu o fatídico episódio da mordida na orelha – e entre Ali e Foreman – the rumble in the jungle, no Zaire em 1974.

Hoje, acredito que minha t-shirt mais icônica seja uma que ganhei do meu ex-cunhado, um comunista convicto. Esta apresenta a imagem de dois lutadores com máscaras black bloc a trocar socos com a frase: “boxe antifascista”.

A verdade é que, desde a minha primeira aula de boxe, em 2017, ocorreu um crescimento considerável do autoritarismo no Brasil, além disso, nos últimos dois anos migrei para Portugal e entendi o que é ser um imigrante, o outro. A imagem da “nobre arte”, de alguma forma impõe uma narrativa de proteção.

Nas dificuldades da vida, gosto muito da metáfora (metáfora?) em que Mike Tyson diz que “todos nós temos um plano, até levar um soco na boca”. O boxe, de alguma forma me faz lembrar que o soco na boca pode vir a qualquer momento.

O uso destas t-shirts também celebra um vigor físico em uma Coimbra composta pela racionalidade dos doutores. Faz contrapontos de signos em vestimentas – particularmente, gosto de usar peças de roupas típicas do universo feminino, como saias, junto com toda a heteronormatividade absurda, por exemplo, imposta em uma imagem que refere ao dia que Tyson arrancou uma orelha com os dentes.

Por último, Coimbra também é a minha primeira experiência em uma cidade muito menor que São Paulo, um local onde quem vem de fora consegue ver facilmente todo um tecido social. Não acredito que poderia compará-la a um “jogo de xadrez”, não é assim que a vida funciona. Mas me parece uma boa ideia ocupar o “centro deste ringue” conimbricense: não por ser uma luta – claro que não –, mas por ser uma valsa em que preciso, urgentemente, entender o ritmo.