Olha, o Jorge, pensou — e disse, para si próprio, com a voz demasiado baixa para que ele próprio se pudesse aperceber de que tinha articulado aquelas palavras — quando viu a fotografia que ilustrava uma notícia sobre a nova iniciativa, o novo protocolo, o novo empreendimento que vai dinamizar o exterior e também um bocadinho o interior. Só um bocadinho, para não criar choques desnecessários, os velhinhos podem não aguentar, os novinhos que sobram podem reagir no pior sentido, que é o sentido de desatarem a matar, de uma maneira ou de outra, quem vier do exterior. Ele há tanta maneira de matar, mais ainda que de compor uma estante. Mas agora é que é, agora é que vai ser, com o Jorge ao comando é que eles vão ver como tudo anda, tudo vai, tudo parte. Olha, o Jorge, ruminou, o nome da pessoa envolto nos ácidos gástricos, a mão esquerda a descer para as coxas, o Jorge está sempre onde está o dinheiro. O Jorge, o Jorge. Agora é parceiro da câmara municipal onde andou a fuçar tantos anos como vereador, ao lado do ministro que passou décadas a untar, sempre soube muito bem como se havia de arranjar, abotoar, calçar, fechar a braguilha: sem hesitações. Perguntou-se se o Jorge lhe falaria caso passassem um pelo outro na rua ao fim destes anos todos. Se se encontrassem num átrio, falaria, com toda a certeza, que o Jorge não gosta de ser encurralado, porta-se sempre bem em espaços fechados. E onde há câmaras. Municipais, fotográficas, de vídeo, escuras. De tortura, especialmente de tortura. Escorregou o rato pela superfície da secretária, indeciso: clicava ou não clicava? O Jorge trazia-lhe… memórias. Boas, más, dolorosas, esfusiantes? Enfim, memórias, enquanto com a mão direita continuava a manipular, a acariciar o rato, a esquerda comprimida entre as coxas. Soubessem os caros leitores daquele pasquim metade do que ele sabia acerca do Jorge. O Jorge. Moveu a página para cima, depois para baixo. Clicava ou não clicava? Na fotografia, apareciam a sorrir, o Jorge e o ministro ensebado, besuntado, delambido, enquanto davam um aperto de mão. O espaço negativo estava preenchido por umas estantes desfocadas onde pontuavam tralhas, as do costume, talvez troféus, pratos comemorativos da feira gastronómica, a taça do clube local na quadragésima distrital, um livro de honra da exposição de alfabetos em ponto cruz. Nada que cheirasse a dinheiro, mas não era preciso. Quem cheirava a dinheiro era o Jorge, olha o Jorge, e o ministro. O Jorge. O que aconteceria se clicasse, com que pensamentos ficaria a sua mente contaminada, que sonhos o assaltariam durante a noite, se não era melhor passar à frente.
Clicou. Após fechar as múltiplas janelas com avisos de privacidade, a notícia desenrolou-se à sua frente, um esgar entre o asco e o sarcasmo nasceu-lhe no rosto, os músculos da face retesados, a mão esquerda inquieta. Não aparecia o nome do Jorge. O do ministro, sim, o do presidente da câmara, também. Mas o do Jorge, não. Aparecia outro nome no lugar em que devia aparecer o do Jorge, o promotor, o motor, o de um tal de Alberto. Puxou a página para cima para que os olhos regressassem à fotografia, que não era ampliável, provavelmente por causa dos direitos, das cópias, dos dinheiros, sempre os dinheiros. Forçou a vista a tentar discernir o seu equívoco, afinal já se tinha passado muito tempo, as memórias visuais ainda são mais traiçoeiras que as outras, olfativas, táteis, gustativas. Degustativas. Seria esse Alberto alguém que ora se assemelhava ao Jorge com mais uns anos em cima do coiro, da focinheira? Copiou o nome completo desse Alberto e colou-o no campo de busca do navegador. Uma torrente de resultados, os primeiros relativos a vendas com a palavra “aberto” no título e, depois, o tal Alberto, aquele Alberto aos molhos. Não havia dúvida — bastava ler os títulos — para ver logo que se tratava de outra sevandija, de mais um parasita a escorrer cunhas, penteado com o dinheiro dos contribuintes. E, pelas imagens, assemelhava-se, com efeito, ao Jorge. Um pouco mais alto, também, aparentemente, e com melhor figura. O Jorge depois de malhar no ginásio, de se esticar na máquina de remo, de suar abundantemente para cima dos aparelhos, de ensopar os calções de licra com as suas feromonas. O Alberto, o Alberto. A nova esperança do desenvolvimento sustentável, da mobilização de sinergias, da excitação de potencialidades. Também fluíra pelos interstícios do poder, também adubara o nome pelos regos da política com a sua solicitude, uma presença constante em todos os tempos e locais que interessavam. Com toda a certeza que se teria cruzado com o Jorge, o mundo é pequeno e o país uma aldeia, um beco escuro de onde procede o odor dos dejetos que o sucesso vai deixando por aí. Mas o que seria então feito do Jorge, como estaria e, acima de tudo, onde estaria, já que quem ali estava não era, afinal, ele. Digitou o nome do Jorge no campo de busca do navegador enquanto noutra aba abria o perfil do Alberto na Rede Social de Tralha Visual, algo que o Jorge desgraçadamente não tinha, e carregava no botão “seguir”. Sempre bem vestido, em sítios finos, o Alberto, algumas vezes acompanhado da mulher ou amásia ou o que seja, tão feiinha que é, a lambisgoia, cheia de joias, está-se mesmo a ver o lindo arranjinho que deve ter com o trafulha do Alberto. O Alberto.