Número 33

30 de Setembro de 2023

CAIXA ALTA

Alice, a andorinha que espera a Primavera

ANDREIA M. SILVA

Baixa o rosto enquanto fala, mas os olhos pousam na andorinha que tem tatuada no antebraço. Fê-la numa das primeiras saídas precárias concedidas pelo Tribunal de Execução de Penas. Aquela ave, que parece ganhar voo a qualquer instante, prestes a sair-lhe do corpo, é apenas uma lembrança. Um prenúncio de liberdade.

Alice cresceu pobre — daquela pobreza onde sobeja matéria, mas onde falta tudo o resto. Cresceu sem o pai, que a abandonou quando ainda mal sabia andar, e sem mãe, morta às mãos de um homem tomado pelo ciúme.

Sem pais e sem norte, a menina, que cresceu num bairro suburbano onde o tráfico de droga é parte da economia paralela, fez-se à vida como pôde. “Houve momentos em que me senti perdida. Ou deixei-me perder”, diz.

Aos 18 conheceu um rapaz por quem se perdeu de amores. Numa noite de chuva, foi detida a transportar, na carrinha do companheiro, 17 caixas de sapatos cheias de droga. Alice jura que não sabia de nada, que as caixas eram dele. O amante lavou as mãos como Pôncio Pilatos e fugiu às responsabilidades.

Condenada por tráfico de droga, cumpre pena há três anos e dois meses. Adaptar-se à reclusão não foi fácil. Houve noites em que não dormiu com medo da solidão — as trevas da incerteza e da saudade a pairarem, constantemente, sobre a sua cabeça. Deixou de ter apetite, a ansiedade a sufocá-la, as lágrimas a rolarem-lhe pela face sem motivo.

“Foram dias difíceis porque fiquei presa sem ser culpada e completamente sozinha. Dói, sabe? Dói muito”, confessa. “Mas uma pessoa habitua-se” e agora a convivência na prisão e o relacionamento com as reclusas torna os dias mais leves. “Se tudo correr bem”, só fica mais oito meses na prisão.

Desde que está presa recebeu quatro visitas da avó — a única que nunca lhe virou as costas. Mas os minutos contados e vigiados no parlatório do estabelecimento prisional eram demasiado penosos. A vergonha fazia-a sentir pequena, demasiado pequena, perante o semblante triste e resignado da única pessoa que quis saber dela. Pediu-lhe que não viesse mais – porque a clausura jamais irá quebrar o laço que ambas mantêm.

Nos dias que pesam dentro da prisão, Alice estuda — tem o 9.º ano — e já fez uma formação em costura.

“Fui criada com a minha avó e ela não tinha possibilidade de continuar a pagar os meus estudos e então fui trabalhar”. Quando sair definitivamente pelo portão enferrujado da prisão, Alice quer trabalhar para ocupar a cabeça e conseguir resgatar a liberdade e os sonhos interrompidos. Não voltar a perder-se.

Quando sair, as pessoas não serão as mesmas e terá outras preocupações: o desemprego, a inflação, a insegurança, a falta de um lugar digno para morar, a ausência de oportunidades. O preconceito.

Alice não se resigna. É outra mulher e, dentro daquelas quatro paredes, encontrou “um ponto de renovação que será um ponto de partida”. Estar privada do afeto e das manhãs claras fê-la perceber, na pele e no peito, o significado de uma promessa. Como se fosse Primavera — a andorinha tatuada no corpo anuncia que ela está prestes a chegar.