As mãos repousam no velho cadeirão enquanto fala. Hoje é domingo, dia Santo reservado ao repouso, e só o receio de pecar a faz contemplar a luz do entardecer que rasga a janela.
Alice Baptista celebra por estes dias 90 anos. Há muito tempo (“parece que foi ontem”), a morte do marido vestiu-a de negro. Ficou sem chão e com três filhos para criar.
“Cada um tem que passar o que Deus quiser e eu tive que me fazer à vida”, diz. Na aldeia onde sempre viveu, entre os vinhedos de Anadia, quase todos conhecem aquela figura franzina, de lenço negro a tapar-lhe os cabelos, sempre tão cheia de vida.
Ainda hoje, são raros os dias em que não sai de casa, na sua velha pasteleira, para ir ao campo ver a vida nascer e crescer da terra. De vez em quando, “foge” para o pequeno quintal que tem nas traseiras da casa e, há poucos meses, teve a habilidade de podar uma das oliveiras que ela própria plantou.
“Foi assim que criei os meus três filhos. Trabalhei muito. Se nem sempre consegui dar-lhes o que queriam, nunca lhes faltou o que precisavam”, assegura.
“Uma vida simples, modesta e a família unida” é o segredo que a mulher acredita ser responsável pelo ar sereno e vivo que mantém. Não sem lutos. Mas o que interessa é que os filhos a cobrem de mimos e desvelos que só uma relação de carinho pode compreender.
Acontece-lhe agora, muitas vezes, recordar o “amor de sempre” que a morte lhe levou quando tinha 41 anos. Conheceram-se ainda em tempos de gaiata, quando Alice começou a ajudá-lo nas lidas do campo.
“A dada altura começou a conversar certas coisas comigo e pediu-me em casamento. Foi a casa dos meus pais pedir permissão”. Ela tinha 19 anos; ele 25. Foram dias felizes. “Ele era um trabalhador incansável, foi um bom pai. Passava horas a cantar para os filhos, algo que fez até morrer”.
Apesar de Alice estar sozinha, ele continua a habitar aquela casa, decorada a gosto e arrumada com aprumo. E juntos — como escreveu Vergílio Ferreira —, recuperam o impossível de quando se amaram e não de quando o amor se possibilitou.
Hoje é domingo, Dia Santo. Ao cair da tarde, será com ele que ouvirá o terço na telefonia. Juntos na oração, como na vida.
Fotografia de DrGica