Número 39

11 de Maio de 2024

EXCURSÕES

Angra do Heroísmo

PAULO VENTURA ARAÚJO

Não escolhemos as nossas circunstâncias: se é assim no nascimento e na infância, não deixa de ser, ainda que em menor grau, na adolescência e na idade adulta. É uma injustiça que eu não tenha nascido açoriano e que Angra não seja a minha cidade. Talvez a falha se remedeie depois da reforma, se então soltar as amarras que me prendem aos lugares que os deuses do acaso por mim escolheram; mas ninguém me indemnizará pelas dezenas de anos que não vivi em Angra.

Fui pela primeira vez à Terceira e a Angra em Outubro de 2001, para assistir ao festival AngraJazz, numa visita de quatro dias em que só as noites, preenchidas com arrastados concertos duplos, tinham programa definido. De dia deambulava pelo quadriculado de ruas, demorava-me no Jardim Duque da Terceira com um livro por companhia, subia ao Outeiro da Memória para ver o casario desaguar na baía. Totalmente reconstruída após o terramoto de 1980, Angra no dealbar do século XXI era uma cidade velha de cinco séculos com a frescura dos vinte anos. Casas brancas de dois ou três pisos, dispostas ombro a ombro, com portas e janelas regularmente espaçadas e emolduradas a cores sortidas (cinzento, amarelo, verde, azul, cor-de-rosa, vermelho); varandas a toda a largura do primeiro andar, estreitas, protegidas por elegantes balaustradas de ferro forjado; telhados de duas águas rematados por beirais de recorte rigorosamente sinusoidal; calçadas decoradas com padrões a branco e preto, o preto do basalto que forma a ossatura da ilha: assim eram as ruas, e nem os edifícios comerciais destoavam do figurino, com as lojas a terem, em vez de uma única grande montra, três ou quatro janelas ao nível da rua para expor as mercadorias. Só as igrejas (e há muitas em Angra) ousavam destacar-se do casario urbano, sem contudo escaparem à obrigação de serem brancas, podendo como as habitações profanas escolher uma segunda cor para os sublinhados. O trânsito automóvel, constrangido pelas ruas estreitas, circulava devagar sem que os condutores dessem mostras de abrasiva impaciência: ter pressa era um conceito estranho, quase contra-natura, para quem vivia em tão pequena ilha. A somar à beleza asseada e geométrica das ruas, o mar cintilava como uma promessa ao virar de cada esquina; um mar que convidava à aproximação, quase sem ondas, amansado pelo Monte Brasil posto em sentinela à entrada da baía.

Com os concertos marcados para as nove, a que acrescia um atraso mínimo de meia hora, havia tempo de sobra para jantar. Escolhia a Adega Lusitânia, já afastada do centro, com um ambiente agradavelmente soturno: chão e paredes de tijoleira, travejamento de madeira escura, mobiliário rústico. Não sendo um bebedor habitual, acompanhava a refeição de sopa e peixe grelhado com meia garrafa de Terras de Lava branco. O leve inebriamento predispunha-me para os concertos, e à época sentia-me moralmente obrigado a consumir produtos regionais como o vinho do Pico. Desde então, o renascimento fulgurante da cultura da vinha no Pico dispensa bem o meu contributo ― que, pelos prejuízos que as desmatações a eito e o uso insano de herbicidas têm causado, também já não estou disposto a dar. A caminhada de oitocentos metros desde o hotel até ao restaurante era exemplarmente católica: descia a ladeira de São Francisco (olá, tipuanas) até à Praça Velha, subia pela rua da Sé (não me benzia ao passar à frente da dita, mas talvez devesse) e, depois de cruzar o Alto das Covas (ou Largo das Amoreiras, como seria chamado se as pessoas conhecessem as árvores), terminava o percurso na rua de São Pedro (olá, buganvílias). Se quisesse alongar-me em desvios ― e tempo para isso não me faltava ―, poderia ainda, com óbvio proveito espiritual, palmilhar a rua do Santo Espírito, a rua de São João e a rua da Cruz.

Nos mais de vinte anos entretanto decorridos regressei a Angra treze vezes, no máximo uma semana em cada visita: coisa pouca, que nem de longe aplaca a necessidade quase física de lá voltar. As obrigações profissionais não me deixam ir à ilha em Outubro, mês em que se realiza o AngraJazz, e na verdade já nem tenho apetite para tantos concertos. É maior a mobilidade agora que viajo acompanhado, pois a Maria é a encartada da família. Não nos ficamos, como eu me ficava, só por Angra ou pela Praia, ou pelas povoações no litoral da ilha servidas pela Empresa de Viação Terceirense. Ignorado pela maioria dos turistas e residentes, o interior da Terceira esconde os maiores tesouros naturais dos Açores: grandes extensões, quase impeneráveis, de bosques endémicos de cedros-do-mato, azevinhos e loureiros. Ainda que formadas por árvores baixas, são autênticas florestas virgens como não há outras em território nacional. Ocupam a Caldeira de Santa Bárbara e a apropriadamente chamada Terra Brava, e é na orla desses lugares, espreitando aqui e ali em alguns pontos acessíveis, que eu e Maria ocupamos os dias até serem horas de voltarmos para Angra, onde sempre ficamos hospedados.

Obrigatória é a visita ao Jardim Duque da Terceira, mas não ficamos por lá horas como era costume eu ficar. Apesar de para nós o gosto por jardins e plantas ornamentais ter sido secundarizado por uma maior apreciação da vegetação espontânea, é bom visitar um espaço onde ainda trabalham jardineiros (profissão já extinta no continente) e onde plantas e flores têm o protagonismo central. Este jardim no coração de Angra, que nos seus patamares acolhe árvores de todos os continentes (araucárias, alfarrobeiras, tulipeiros, paineiras, dragoeiros, vinháticos, magnólias, hibiscos, medronheiros, fetos-arbóreos, fragipanas, palmeiras diversas…), foi há quatro anos ampliado com um passeio panorâmico dedicado ao botânico açoriano (e terceirense) Ruy Telles Palhinha (1871-1957), autor de um importante Catálogo das Plantas Vasculares dos Açores. Em 2023, no início de Abril, data da nossa mais recente visita, uma árvore de copa flamejante, que nunca havíamos notado, destacava-se no patamar inferior. A árvore estava despida de folhas, e eram as flores tubulares agrupadas em cachos como cristas de aves espampanantes que lhe davam a cor vermelha. Quando tivesse folhas, a árvore não teria flores, remetendo-se a um anonimato que desculpa, em parte, a nossa anterior cegueira. Tratava-se de uma Erythrina speciosa, árvore brasileira a que podemos chamar coralina (no Brasil o nome dela é mulungu) e que, entre nós, é muito menos cultivada do que a sua conterrânea Erythrina crista-galli, mais resistente ao clima europeu. De olhos finalmente abertos, vimos mais duas ou três vigorosas coralinas nos jardins de Angra ― prova adicional de que o clima dos Açores, tido embora como temperado graças à latitude, é na verdade quase subtropical. Também ficámos cientes de que, para conhecer bem uma ilha como a Terceira e uma cidade como Angra, precisamos de a visitar em todas as estações do ano ― ou, se calhar, de nos mudarmos para lá de vez.

Jardim Duque da Terceira, Erythrina speciosa.


Jardim Duque da Terceira, Erythrina speciosa.