Falam outra vez dos incêndios. Escuto as vozes que gritam sofrimento. Há quem escuta as árvores a morrer. Mas não ouço as vozes de quem vive lá. Passei por isso em Serpins, em 2017. Vi as imagens do fogo a circular nos quintais. Vi as oliveiras a arder dias depois. As ruínas. Os postes queimados. As pessoas que perderam casas. Felizmente ninguém morreu. Mas no dia seguinte todas foram trabalhar. Não houve folga para embarcar em esforços individuais ou familiares de recuperação, ou de apoio mútuo. A Câmara tomou conta disso. O “dinheiro dos incêndios”, da reconstrução, não se sabe por onde andou, mas sabe-se que apareceram obras feitas. Assim como o dinheiro dos seguros (quem os tinha).
Ninguém quis saber assim tanto dos incêndios. O imperativo foi o “regresso” à normalidade – o trabalho, os negócios. O querer esquecer. O não querer pensar. O não querer desafiar o status quo de quem governa. O esperar que não venha outro, pelo menos durante cinco anos. Como se fosse um dragão que acordasse de vez em quando, e levasse alguns de sacrifício, para dormir novamente, mais calmo.
O que podemos fazer? As respostas abundam, mas são, tipicamente, as mesmas: tornar a floresta mais resiliente, melhorar a prevenção, a primeira intervenção, o combate. Fazer educação ambiental.
Os incêndios deixam a pele chamuscada. Ficam marcas negras na paisagem. Florestas zombie, mortas-vivas durante muito tempo. A espera das primeiras chuvas para voltar algum verde, que esconda o negro da paisagem.
Tenho-me dedicado a acompanhar os esforços para tornar a floresta mais resiliente e participado em algumas formas de educação ambiental. Quase sempre partilham do mesmo princípio: os cidadãos do lugar não podem fazer verdadeiramente parte da solução. Devem fazer o que o status quo pede que façam – envolver as crianças e demais pessoas em ações de voluntariado palpável – o mais comum é plantar uma árvore – cheias de discursos de responsabilização sobre o futuro, para de seguida deixar as árvores morrer, seja por falta de água, por o solo não estar preparado, por falta de conhecimento, habilidade ou organização por parte de pessoas que queriam sentir que faziam alguma coisa, sem nunca mais voltarem ao lugar. Sem nunca se preocuparem de quem é aquela terra – os proprietários tidos como gente ausente, desinteressada, que apenas responde a incentivos económicos, plantadores de eucalipto ou absentistas. Estive numa destas atividades, cuja realização era um fim em si mesma. Sabia de quem era aquela terra e que os legítimos donos não tinham sido sequer consultados. Mas percebi que os promotores não queriam saber disso. Porque é que a maioria das pessoas de Serpins não se envolveu na plantação? Porque não se querem envolver com as entidades promotoras. Envolver-se com a plantação de árvores é envolver-se num espaço de conflito com a administração local e com a sua rede de apoiantes, é ter de reclamar ativa e democraticamente perante a Câmara Municipal a posse e a gestão das terras e o seu registo. A terra é um espaço de sociabilidades, memórias, histórias passadas, marcos, rivalidades, construção de relações de respeito, ajuste de contas passados. A terra é um espaço onde a população local e a sociedade se materializa.
Restaurar a floresta e torná-la mais resiliente implicaria uma transferência de capital para as pessoas proprietárias, e teria de ir além da “limpeza”. Implicaria procurar ganhar tempo para que uma floresta mais autóctone pudesse surgir, sendo favorecida. Uma gestão ecológica assumida principalmente, mas talvez não unicamente, para esta finalidade. Uma gestão que criasse empregos para a criação duma nova paisagem. Milhares de instrumentos foram pensados para este propósito: o fundo florestal permanente, as associações florestais, os fundos estruturais. Criaram-se esquemas complexos de planeamento sem resultado observável a não ser o reforço do imobilismo da administração local. Sem quererem colaborar com pessoas que não respeitam ou que os desafiam, sem outra coisa a oferecer-lhes que mais perdas, ou sanções. Criam-se zonas de intervenção florestal que nunca aparecem, ou que nunca são financiadas, implementadas ou monitorizadas. A verdade é que não sabem como pensar ou implementar tal plano sem recurso à autoridade ou à violência do passado.
Todas estas relações, mágoas, humilhações, traições, estão depositadas na serra. Ela cresce imponente, e depois vai-se erodindo, expondo as suas pedras constituintes. A serra cresce não porque é grandiosa e imponente, mas porque é o resultado de todas estas camadas que nunca se comprometem, apenas se comprimem ou sofrem tensões, à espera do alívio das chuvas, ou do dilúvio.
Cheguei a casa e vi tudo isto. Nem queria olhar para as árvores. Foi aí que me lembrei: — As árvores não têm culpa.