Número 42

10 de Agosto de 2024

JE SUIS UNE CHIENNE

As Leis da Permanência

Vários

Na caixa da Motosserra, modelo CS42, cilindrada 45.6cc, potência 1800w, A Ideia da Europa é arrumada junto à Viagem ao Fim da Noite, numa solução não muito feliz. «caralhos fodam tudo isto», as casas de jacintos e margaridas literárias, penso. A Mad envia mensagem dizendo que a bastonada de um polícia, dependendo do sítio onde acerta, pode até ser muy poética e valer lançamentos de peso. A caixa da Motosserra não levará mais de 6 kg. As casas mudam-se, nós ficamos onde sempre estivemos.

A menos que seja de noite. De noite, quando todas as casas são pardas, tudo muda de sítio, umas vezes para a frente, outras para trás, e com os primeiros raios da manhã volta aonde sempre esteve. Deve-se a isto, a esta suspensão das leis da permanência, o sucesso de vendas dos comprimidos para dormir.

Deixa ficar a tralha. Tudo o que for de valor simbólico e que não tenha valor de troca. Tudo o que pese ou que não tenhas usado durante os últimos dois anos. Os livros que não tenhas lido. Todos. Dá a roupa, toda a roupa. Lá serás um homem novo, com outros números e outras cores. Mas guarda os sapatos velhos. Têm a memória dos teus pés e são os mais cómodos para os passos que te esperam. Guarda as facas, a frigideira e todos os utensílios de jardinagem. A máquina de café, a chávena do pequeno-almoço. Os cadernos, as canetas e os lápis. Só os cadernos em branco. Lá é que vais escrever bem.

Os vizinhos sabem que estás em mudanças face à novidade do olfacto inerte, livre dos escapes, e dos tímpanos sobreexcitados. Agora, todo o dia, não canta o rouxinol ou a cotovia, só os decibéis das tuas vocalizações tripeiras, «veros bilros, está-lhes na massa do sangue», qual Nina Hagen à capela com os Einsturzende Neubauten em fundo, num lindo momento intenso que deixaria Calíope deleitada.

Depois, «Transportes Faria, fretes de noite e de dia». Depois, a sina dos jacintos, margaridas e outras teimosias. E então, de novo, o novo lar abarrotará, doce.

A mudança é acompanhada por um jogo de luzes e sons muito próprio — a luz que entra de esguelha no quarto, antecipando os ruídos madrugadores que antecedem a viagem — um murmúrio sintonizado com o mar. Vezes há, também, que essas luzes ou sons se tornam moto-serra, rebentamento marítimo, estroboscópicas cornucópias, o nevoeiro de Sines.

As casas. F. ficou a olhar enquanto a carrinha desaparecia no fim da noite com as coisas que encheram parte da casa durante estes anos. Com a última caixa que ajudou a encaixar no complexo puzzle que enchia a carrinha, voltou a sentir uma dor antiga, no braço esquerdo, no mesmo local onde o cabrão do polícia lhe acertou quando levantou a mão para se defender. Regressou para dentro e olhou o espaço, agora meio vazio. Quase tropeçou na porra da motosserra. Não tinham conseguido acertar quem ficava com ela.  

Enquanto penso nisso, ouço o ranger da motosserra. Não se pode cortar uma árvore sem fazer barulho. Não há mudanças sem ruído. Os livros misturam-se dentro da caixa, como as memórias dentro de mim. Tenho-as de todos os modelos, cilindrada e potência — e pesam-me muito mais do que 6 quilos. Mesmo quando ficamos onde sempre estivemos, não ficamos imóveis. A cabeça grita mais alto do que a motosserra e há, ainda, tantas caixas vazias.

De repente, sinto uma leveza inesperada. O peso das memórias, das máquinas e dos cadernos em branco dissolve-se. A última caixa vazia ri-se para mim e, com um suspiro, também ela levanta voo, juntando-se às vacas e aos pinheiros dançantes no horizonte de um novo dia.

Entre capas, o catálogo da Husqvarna com as meninas que cortam o lenho dos pinheiros.


[As Leis da Permanência foi escrito, em simultâneo, por API, CJ, DB, FF, HB, LJ, LLP, MM e RAS, a partir do texto do primeiro parágrafo.]