Número 5

29 de Maio de 2021

CORPO, BELEZA E SAÚDE

As quase-humanas

RITA SERRA

Há um tema que me intriga. As princesas da Disney. Não sabia que a Branca de Neve é de 1937, nem que a Cinderela e a Bela Adormecida são dos anos 50, nem que a Disney foi salva pela Ariel em 1989. Não sabia que a Bela, Jasmine, Pocahontas, Mulan, Tiana, Rapunzel, Merida e Vaiana são dos 90 até agora. Acima de tudo, não sabia que a Disney fez muito mais do que princesas, e que só nos lembramos delas, o que mostra que têm mesmo algo de especial.
Penso que o sucesso resulta de como viajam entre três dos quadrantes da Susan Fiske — uma psicóloga social que estuda estereótipos. Sugeriu que definimos as pessoas que contam como nós como benevolentes e eficientes, e as restantes pessoas como aliens — outras. Há as benevolentes e deficientes; as maléficas e eficientes; e as maléficas e deficientes.
As princesas da Disney são pessoas como nós ou quase-humanas.
Enquanto as princesas humanas estão inseridas nas suas comunidades, as quase-humanas enfrentam batalhas de aliens. Apesar de serem encantadoras e terem o apoio incondicional da maioria dos animais, plantas e criaturas fantásticas, são alienadas socialmente. São capazes de ultrapassar as dificuldades sociais através da colaboração com outros deficientes, sejam anões, pássaros ou chaleiras. É a elas que cabe enfrentar as maléficas mas eficientes, que vêm da casa do trauma — narcisistas patológicas que amam os seus reflexos, sem empatia nem compaixão, que devem ser super-nauseantes, enquanto as nossas princesas têm sempre ar de quem cheira bem. As mazonas são desanimadoras e causam simbioses negras — internalizam os seres vivos como objetos e obrigam-nos a comportar-se da forma que os internalizaram. As perfumadas ganham sempre após as humilhações que superam, e o narcisismo patológico é autodestrutivo quando os reflexos no espelho colapsam. Não está mal. Mas deteto aqui um problema no argumento: parece que as pessoas narcisistas são derrotadas com excesso de empatia e benevolência. Mau. A forma de derrotar narcisistas não é com fantasias escapistas, é a estragar-lhes as fantasias. Espelho meu, espelho meu, há alguém mais belo do que eu? Há. Fim da picada. Lá se foi a grandiosidade.
Por isto é que não gosto da ideia de reenquadrar as pessoas más como vítimas de trauma e jogos políticos. Não é a apagá-las que desaparecem de cena. Temos de abandonar as fantasias outrora partilhadas e animar-nos novamente. Temos de aprender a colocar barreiras saudáveis.
Por estas razões, a princesa mais interessante da Disney é a Bela.
A Bela, além de ler um livro por dia, não se revê e nem tem nenhuma afinidade com a aldeia. Aquele não é o seu povo. Adora o seu pai que é inventor.
A relação da aldeia com ela é dupla: por um lado, admiram-lhe a beleza, mas desconfiam da sua loucura — o seu interesse por livros e a loucura inventiva do seu pai. Os inventores sempre foram seres meios loucos, porque arriscam muito com as suas invenções — não lhes correm bem à primeira. E Gaston, o caçador da aldeia, o homem que transpira masculinidade tóxica, quer Bela como peça de caça. É um dos que adora o seu reflexo e se acha grandioso, e Bela estraga-lhe toda a grandiosidade. Diz-lhe que ele cheira mal dos pés, escapa às suas investidas agressivas de assédio e envergonha-o publicamente, ao ponto de este decidir vingar-se, colocando o pai dela num asilo de loucos. É claramente um capacitista, que acentua as deficiências sociais do pai para capturar a filha. E como sempre, a aldeia segue-o como líder, a esta besta. Bela, por um infortúnio, vai parar ao castelo dum homem enfeitiçado com aparência de monstro. Mas muito bem Disney: não é só aparência. O tipo é uma besta bruta do quero, posso e mando. Não é a besta do Gaston, mas é uma besta, mesmo assim. Diz coisas como: fazes como eu quero senão não há jantar. E ela coloca-lhe barreiras. Faz-lhe terapia: tens de aprender a controlar a tua raiva, eu saio e vou jantar contigo quando eu quiser, enfim, faz o que deve fazer uma pessoa que resiste a ser objeto interno de outra e tratada como um objeto, mesmo estando numa condição vulnerável — afinal de contas, está no castelo dele. Curioso que ela tenta a mesma abordagem com o Gaston, mas não funciona. Quando lhe diz “tu não sabes o que eu quero”, ele fica chocado. Afinal, não podemos esperar muito dum tipo que não sabe que é possível ler um livro sem figuras, ao que ela responde, “é só usar a imaginação”. O que mais gosto da Bela e o Monstro é a sua literalidade: o homem não era um homem transformado num monstro. Era um monstro, que ao interagir com uma humana, ganha forma humana. Talvez ser humano seja como ser mulher: não se nasce um, mas torna-se num. Talvez por isso as pessoas autistas tenham desafios enormes em aprender a ser humanas, ao ponto de escreverem livros sobre o assunto. Talvez a fase de antropóloga em Marte da Temple Grandin seja na verdade um ensaio. Quem sabe, talvez os antropólogos sejam ensaístas da humanidade.