A rapariga não queria cortar o cabelo, a mãe cortava-lho.
Consentia-lhe que o deixasse crescer durante o Inverno, constituía um apetrecho natural contra o frio, tolerava-lho durante a Primavera, quando tudo crescia, mas, mal os calores se faziam sentir conformes ao estio, cortava-lhos, indiferente às lágrimas da rapariga que caíam ao mesmo ritmo dos cabelos, criando um corpo de baile exemplar.
A rapariga gostava de cabelos compridos. A mãe detestava-os.
Cheiravam-lhe a pobreza, a ignorância, a merda. Lia as revistas femininas da cidade nas quais as mulheres se alongavam encimadas por cabelos curtos onde ninguém lhes fazia ninho ou pulga se lhes instalava atrás da orelha.
A rapariga queria que o sol lhe dourasse os cabelos, que os cabelos se confundissem com um campo de trigo, com um imenso areal, que fossem com o vento, crinas de animal selvagem, se aquietassem sobre as coordenadas junto ao coração ou se unissem em tranças pacientemente cruzadas.
Depois dos cabelos cortados, a rapariga evitava espelhos e superfícies reflectoras durante os longos dias que têm três meses. Não se abeirava das águas, entrava em casa de cabeça baixa, rejeitando a proximidade dos quadros religiosos, dispostos ao longo do corredor, que fixava ao longe e lhe ofereciam sagrados corações cujos donos pareciam seres amputados que com ela formavam parelha. Não ostentava o fruto da ablação, embora à cabeça rapada a transportasse como a um pequeno troféu materno.
Mas nas ruas, ah nas ruas!, as pernas faziam-se lianas, trepavam muros, pórticos, treliças, ganhavam alma suplementar e a rapariga amigava-se com as sombras, só elas lhe devolviam a própria imagem, conseguida estrategicamente através do uso de uma touca onde a lã tricotara compridos atilhos que, no tempo do vento e do frio, lhe asseguravam proteção dando-lhes uma grande laçada debaixo do queixo. Nas ruas soltava atilhos e das sombras surgiam-lhe aladas tranças que lhe permitiam a alegria exacta de se elevar dez centímetros do chão, fenómeno em que os outros não reparavam, presas do facto de ela usar uma touca de lã em pleno Verão e dos nomes «Louca da touca! Louca da touca!» que lhe chamavam. Ela pensava no que separava essas palavras, mínimo como um fio fino de cabelo.
*Do título «Não me Cortes o Cabelo que Meu Pai me Penteou» (2002), filme de Margarida Gil, realizado a partir de um conto popular português
Ilustração de Diogo Bessa