Número 42

10 de Agosto de 2024

O LADO INCERTO

As raparigas fazem o Verão – 4. Tio encantado

ANA PAULA INÁCIO

Não era Verão, corria Fevereiro e o frio, assim o crio, barbeiro. As mulheres urinavam de pé, abrindo as pernas e o vapor envolvia-as numa neblina que as dissipava.

A rapariga tinha, então, quatro anos e a morte entrou-lhe de rompante através do corpo do tio exposto no meio da sala vazada de objectos. As paredes caiadas faziam sobressair a noite unânime donde subia um choro constante que caia sobre a rapariga e lhe colava o vestido ao corpo, deixando-lhe uma sensação de aperto, da barriga à garganta, colocando-lhe o coração na boca, cerrada com férrea determinação, não fosse ele saltar-lhe anfíbio e esconder-se em lugares assombrados.

O vestido da rapariga era vermelho, uma pequena mancha de escândalo no centro da onda negra das mulheres doridas.

O vestido vermelho da rapariga abria-se como rosa de sangue sobre o branco das paredes.

Em vão tentaram extraí-la, destinando-lhe paragem impermeável à dor que já se lhe adentrara como o corpo do tio na sala da casa aberta ao choro torrente, corrente ligada à avó esvaída, escavada, esventrada, carcaça votada ao inferno, jaula de um grito que não encontrava saída.

A rapariga permaneceu de vestido vermelho como se este fosse a avó em carne viva.

A rapariga foi um clarão junto à última noite do corpo do tio até a manhã surgir para o levar, quando a mãe lhe pediu que dele se despedisse com um beijo. A mãe pedia-lhe que se despedisse daquele corpo de cabeça envolta em ligaduras onde apenas uma pequena área descoberta mostrava uma pele cinzenta. Ela não via o rosto do tio. O coração regressou-lhe à boca.

A mãe segredou-lhe que, se ela recusasse o seu pedido, o tio jamais volveria anjo ou subiria aos céus.

O vestido vermelho fez-se lívido, indistinto das paredes, e a rapariga, engolindo o coração, depositou um último beijo naquela superfície inerte e fria, e então imaginou com todas as suas forças que o tio era a bela adormecida e ela o próprio príncipe encantado.


Ilustração de Diogo Bessa