Faltam dez minutos para as duas da manhã e a rua dança nas paredes do quarto de cada vez que um automóvel varre de luz o interdito da noite. Não consigo dormir*. Penso na cidade e nas perguntas que deixo constantemente em aberto, no refúgio criativo que se tornou aceitá-la como um subúrbio imaginário onde o fumo do escape não entra senão a convite. O escape: um sonho não poluente em que o dia convida a um jardim, um busto de um herói anónimo e uma mulher contando histórias. Uma mulher contando histórias numa língua que não a minha, abrindo espaço a outra dialética: por exemplo, o espaço do olhar, o espaço-entre-nós.
Apercebo-me de que estive demasiado tempo a habitar as cidades sem materializar as experiências, fosse em textos, álbuns ou mensagens gravadas nos troncos das árvores e, por isso, isolando-me nelas, quando, por fim, dei por mim a entrar diariamente, no lugar do morto, na cave de uma garagem, aguardando, passiva e atentamente, a perícia de quem me conduzia em retirar do molho de chaves o dispositivo mágico que abria o portão metálico, resvalando-me, imprestável, para um submundo, e a pensar o quanto das nossas rotinas se tornou oculto e automático, e como isso se reflecte diariamente na vida das cidades — elas foram postas a funcionar para nós.
Não me interpretem mal, são já três e um quarto da manhã, e nunca me senti tão urbano. Ando de metro, pago os meus impostos e atravesso a estrada fora das passadeiras. Há quem, neste preciso momento, grite lá fora por mais desespero, mas eu, hoje, só penso nela. Tenho uma mulher atravessada entre as pálpebras*. O confinamento deu cabo de nós, reduzindo, ainda mais, o já fraco entendimento do artefacto ‘cidade’, até que chegou o momento em que espreitar por um postigo se tornou um ápice de poesia. Eu era um dos que espreitava, direi um dia.
E essa mulher, falando noutra língua a mesma língua, evoca a beleza de uma máquina de escrever: também as máquinas já foram compreendidas sem falarem connosco. Os mais curiosos poderiam percorrê-las com as mãos e com o olhar, descobrindo-lhes os mecanismos e os propósitos, e, com um certo cuidado e destreza, podia-se mesmo desmontá-las e voltar a montá-las. Brincar com elas, lutar com elas ou contra elas, dotando-as de uma leveza lúdica ou da sua gravidade política, como fará para sempre Charlot. Sempre atentos às suas rodas dentadas, aos circuitos, e à necessária supervisão e super-visão do homem. Atente-se no explícito de um piano quando lhe destapamos o corpo e em como a maravilha do som se repete na maravilha dos olhos. Ou numa locomotiva a vapor, toda ela uma evidência do mistério de como se faz do perigo do fogo uma moção proveitosa e violenta. Quem olha hoje para uma locomotiva ou para essas novas máquinas de escrita? Quem olha hoje para uma cidade?
Não me interpretem mal, são agora quatro e meia da manhã e nunca valorizei tanto a tecnologia. Foi ela, e só ela, que me permitiu transportar o entusiasmo para esta noite. Pressinto apenas que se os agentes das cidades, os designers, os engenheiros, os arquitectos, fossem mais honestos nos aparelhos que nos vendem — talvez bastasse um menor investimento nos embrulhos e mais nudez nos engenhos —, e nós mais envergonhados com o facto de termos adoptado o conceito de estore eléctrico, estaríamos todos mais embrenhados no mistério que são os lugares em que vivemos, em vez de ansiosos utilizadores de apetrechos com os quais não conseguimos comunicar — eles funcionam para nós, mas, fundamentalmente, sem nós.
Quis a sorte que os dias de automatismos descendentes se transformassem no ânimo de subir prédios recusando o elevador, ativando os músculos adormecidos sem a preocupação de contar andares. Estou agora num terraço sobre a cidade. Aqui de cima, com a calma nocturna exclusiva destes afortunados que a horas impróprias para uma quarta-feira dialogam com as sombras, consigo perceber melhor o que de misterioso ainda se manifesta nas cidades. Voltarei sem apanhar o elevador e regressarei a casa a pé, assistindo ao espectáculo que consiste no facto de os candeeiros de rua se acenderem e apagarem a uma hora certa, sem nos darmos alguma vez conta disso: de que as cidades estão, também, repletas de pequenas teatralidades.
Não me interpretem mal, não se trata de castigar o avanço tecnológico retirando-o da esfera poética, nem de o colocar nos píncaros de uma estética que já dizimou muitas almas. É apenas o eco de uma conversa sobre a necessidade de entendermos o sentido das coisas que desejamos, e para isso é importante que tenhamos mais cuidado com alguns automatismos. Sobem já os primeiros azuis. Terei mesmo de ir dormir sem resolver esta alucinação que me persegue. Se pudesse, dizia-lhe que se fosse embora, mas tenho uma mulher atravessada na garganta.*
* Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre as pálpebras. Se pudesse, dizia-lhe que se fosse embora, mas tenho uma mulher atravessada na garganta. Eduardo Galeano, A Noite/1 em Mulheres.