O recém-nascido nasce coberto de uma substância a que chamam vérnix caseoso, um biofilm composto de células da pele, descamadas, embebidas em gordura e em parte produzidas pelas glândulas de sebo do bebé. Este vérnix, ainda misterioso, tem várias funções, todas benéficas e impossíveis de substituir. Não deve ser removido. Por tudo isso, o primeiro banho vai ser adiado. Nas boas normas, o recém-nascido é seco, limpo de sangue ou de mecónio, mas não é lavado. Entregue à mãe, a sua urgência é de tocar e ser tocado, agarrar, sentir, procurar, subir, abocanhar. O banho do recém-nascido pode esperar e essa espera faz parte do encanto do primeiro banho para a qual se reuniu banheira, água tépida, termómetro, sabões sem sabão, esponjas, cremes, toalhas, fraldas.
Gostava de falar dos corpos. Do banho. Dos corpos que se lavam.
Porque sou tão bela? — perguntava, falsamente enfática, a amante de Éluard, da Capital da Dor. E a resposta era: — Porque o meu Mestre lava-me.
Hoje nem uma surrealista teria coragem para dizer que o Mestre a lava. E que por isso é bela. Mestre, como o Mestre de Margarida, de Bulgakov.
Nenhuma mulher saudável é, agora, lavável. Nenhum corpo, exceto em estado de reabilitação ou, pior, de cuidados paliativos. Mas as belas de há cem anos, as mulheres como Kiki de Montparnasse, a quem Man Ray desenhou no dorso as fendas do violoncelo, eram lavadas pelos amantes porque havia uma coisa definitivamente nova na agenda europeia. Essa coisa nova era o corpo.
A Idade Média não foi uma longa noite de mil anos. Foi uma noite de mil anos e de sujidade. Como escreveu Michelet: — Nul bain pendant mille ans!
O cheiro do corpo humano medieval atravessa a Idade Moderna e chega até nós. Está nos elevadores, nos bancos dos táxis, nas pias das igrejas, nas sedes dos partidos, nas salas onde se velam os mortos, nos ginásios dos liceus, nos estádios vazios, nos supermercados da cadeia Linho Foice, no hall dos hotéis desativados, no Conselho Fiscal das agremiações, nos corredores dos notários, nas federações desportivas, nos comentários de António José Teixeira.
O único tempo de liberdade foi o período entre os anos 50 e os anos 80 do século XX. Entre, por um lado, o fim da guerra, a descolonização, a pílula, a decadência da sociedade patriarcal e, por outro, a reconfiguração do poder do capitalismo. Um dos símbolos desse tempo é o banho de Anita Ekberg, na Fontana di Trevi.
Depois, a SIDA fechou os banhos públicos, o puritanismo invadiu os movimentos identitários e, finalmente, a Covid fechou tudo. As graduadas da Mocidade Portuguesa gritaram, nas manifestações dos anos 50: — Abaixo o Amor Livre!
A mesma voz foi ouvida nos telejornais na terceira onda da pandemia. Exigiram: — Fechem tudo, tudo!
De facto, nenhum corpo, ao ser lavado, se perde para o amante. O corpo da amada é inviolável. O corpo deixa-se lavar. O corpo é uma armadura córnea impermeável. Liso, estanque. O corpo não se dá, não se perde.
Quando Alejandra Pizarnik escreve, “com palavras deste mundo, que parte de si um barco levando-a”, o corpo parte e fica, como tantas vezes acontece. E o corpo que parte não leva nunca o corpo. Algo fica para sempre. A ver partir. De si, imperecível. O corpo que fica é o corpo que verá o outro morrer, antes do fim da viagem, em qualquer lugar.
Um banho inesquecível foi tomado por Guido Anselmi em Fellini 8 ½.
Cleópatra tomava banho em leite e mel.
Maria Antonieta, de Sofia Coppola, banhava-se, nos momentos de tristeza, em pinhões, sementes de linhaça e amêndoas doces.
O rosto da banhista de Valpinçon permanecerá sempre escondido e adivinhado.
O delicioso banho de leite de vaca, porque de burra não há, foi dado por João de Deus à menina Joaninha, na Comédia de Deus.
O duche de Psico ainda assombra muita cortina de banho.
O banho usa produtos para levar as células que caíram, e o suor, e o sebo. Emolientes, esfoliantes, queratolíticos. Um rio de células escorre pelos canos e vai cobrir os campos com um novo vérnix.
Há uma frase de sabedoria, dessas que agora percorrem o discurso político ou as redes sociais, setor erudito. É a que diz para ter cuidado, não se vá deitar fora o bebé com a água suja do banho.
Esta expressão idiomática parece vir do alemão medieval e ter sido recuperada, entre outros, por Carlyle e, no século XX por Bernard Shaw:
“Don’t throw the baby out with the bathwater” é um aviso para os que caem na imprudência de eliminar o que era verdadeiramente bom, num processo de alteração de algo considerado suscetível de aperfeiçoamento.
Revejam os protocolos de atuação.
Mudem o sistema de jogo, o treinador, alguns jogadores.
Melhorem a democracia. A saúde pública. A segurança alimentar.
Mas cuidado, não atirem o bebé fora com a água do banho.