Memorialismos é um espaço para escrever o que não cabe noutros lugares, na escrita profissional ou na de ficção. Mas escrever sobre mim tem um sabor a fim de ciclo, em relação ao qual sinto ao mesmo tempo urgência e nojo.
Um antigo Diretor meu disse várias vezes em público (o que sempre me constrangia) que eu era «um dos melhores bibliotecários da minha geração». Creio que estava completamente errado, eu serei, talvez, um dos melhores bibliotecários «da geração anterior»: um anacronismo, um bibliotecário que sabe paleografia; que ainda teve de aprender latim e lê em francês; que escreve colophon à grega e que distingue ex-libris de super-libros. E a quem ensinaram a perguntar porquê, em vez de só cumprir as regras.
Na nossa profissão, as regras desempenham um papel essencial, veja-se o calhamaço das Regras Portuguesas de Catalogação. Eu defendi sempre que a maior parte destas Regras eram inúteis se nelas suprimíssemos o conceito de Entrada Principal, criado que foi – com fundamento meramente económico – na Conferência dos Princípios de Catalogação (Paris, 1960). Sem tal conceito, que hoje o computador quase permite dispensar, as Regras poderiam reduzir-se a metade. Porém, como poderiam os bibliotecários continuar a reivindicar uma tecnicidade, uma hiperespecialização da profissão se o nosso instrumento de trabalho tivesse 100 páginas ou menos? Ninguém quer sequer imaginar tal. Complicar uma praxis profissional, especializar-lhe o vocabulário torna-a mais inacessível aos olhos dos estranhos, é uma forma de nos sentirmos mais «científicos», mais indispensáveis. Pelo menos até que chegue a IA!
Há tempos, já não sei onde nem quando, profetizei que enquanto um computador só conseguisse descrever 13 homens a uma mesa mas não a Última Ceia, a nossa profissão continuaria a ser necessária. Porque a indexação humana acrescentava cultura e trazia valor. Ora, a IA já é capaz de dizê-lo e é até capaz de reconstituir o menú! As ferramentas automáticas de indexação, que já andam por aí há muitos anos (desde o Citation Index), acumulam-se e aperfeiçoam-se. Qual será agora o nosso último reduto, perante o avanço do algoritmo?
Diria que é pensar ainda melhor. Diria que é saber transgredir. E diria mais, que talvez tenha sido a minha (desatualizada) formação académica que me habilita a ter uma visão mais integrada, menos técnica e mais humanista, onde a tecnologia se deve submeter à Ideia.
A necessidade de regras
A principal questão da profissão é mesmo a falta de pensamento crítico: tive há tempos uma discussão feia por causa de uma opção que pensei (ingenuamente) que seria consensual, uma vez explicada. Estava errado, porque o apego à letra da Regra parece ser uma das últimas defesas dos meus colegas bibliotecários. A questão é simples de explicar, mesmo a leigos: as Regras Portuguesas de Catalogação mandam inverter o apelido como palavra de entrada. Qualquer utilizador de bibliotecas está habituado a ver um autor apresentado desta forma:
Queirós, Eça de
em vez da ordem natural, Eça de Queirós.
As Regras são úteis (e necessárias) para, por exemplo, não coexistirem simultaneamente no catálogo as várias formas do nome do autor, tal como ele pode livremente figurar no documento:
Queirós, Eça de
Queiroz, Eça de
Queirós, José Maria Eça de
Etc.
Mas também penso que é fácil de entender que, não havendo necessidade de ordenar vários nomes, também não há necessidade de inverter-lhes o apelido, o que apenas torna o nome menos inteligível à primeira leitura. Que nada justifica usar este artifício, por exemplo, na legenda de um livro numa exposição, se aí os livros não se apresentam em ordem alfabética. Numa exposição, isto parece-me «tique bibliotecário» inútil. Porque insistem, então, os bibliotecários em também inverter o apelido nestes casos? Apenas porque «está assim nas Regras»? Esquecem que a regra que manda fazer a inversão do apelido foi criada para resolver problemas de ordenação num catálogo, e nada mais.
E a necessidade de transgredi-las
Pediram-me há pouco tempo uma experiência de vida profissional e eu contei este caso passado num daqueles saudosos meses de agosto em que os utilizadores, sobretudo os estrangeiros, acorriam à Biblioteca Geral para fazer as suas investigações. Agosto era sempre um mês excelente para se trabalhar na secção de Manuscritos, havia estacionamento à porta, o telefone raramente tocava e os utilizadores que chegavam eram mais desafiantes. Estava na minha secretária, quando um casal de jovens meteu a cabeça pela porta e disseram que sabiam que a BGUC tinha uma primeira edição (1572) de Os Lusíadas. «— Podíamos ver?»
Porque o exemplar está digitalizado, normalmente o bibliotecário remeteria para o digital qualquer utilizador sem a creditação científica (e sem outras excelentíssimas razões) para consultar um original raro. Disse-lhes para entrarem e fui perguntando o porquê do interesse: explicaram que eram a «guarda avançada» de um grupo de uma dezena de jovens, segunda geração de emigrantes (EUA e Canadá), que viajavam por Portugal à procura das suas raízes. Pedi que entrassem todos, fui buscar a obrinha ao Cofre, mostrei-a demoradamente e expliquei o que sabia sobre aquela preciosidade. Entendi que ao mostrá-la assim àqueles miúdos apenas correspondia à dedicação e ao esforço que eles tinham despendido à procura de algo para eles culturalmente muito significativo. Talvez ainda hoje, homens e mulheres, eles se lembrem daquela obra «icónica» que viram em Coimbra, fora de uma vitrine climatizada e, embora na minha mão, quase ao alcance das mãos deles; talvez em mais sítio nenhum do mundo isso lhes fosse permitido. Eu é que nunca me esquecerei da felicidade nas suas caras.
É uma história que gosto de recontar porque me distancia de um respeitinho «bacoco» pelas Regras e pelos Procedimentos, que me distingue dos «bibliotequeiros», como gostava de mal-dizer José de Abreu Barbosa, bibliotecário da «minha geração» adotiva.
E, já agora, talvez a única coisa que ainda pode distinguir os homens das máquinas.