Dói. Sofro demais. Vejo como sou exagerada perante outros. Porquê?
Porque sou feita de carne. Porque o que sinto é através da carne. A carne é o meu pulsar emocional. Se não me toca a carne, não me toca. Vejo o mundo com o corpo. Ou sou cega, indiferente.
Como significar uma informação abstrata sobre pessoas que nunca conheci?
Como sei se existem, mas acima de tudo, como são?
Sinto-me uma filósofa que escolhe filosofias sem sentir – impossível escolher informação de forma abstrata. Escolho quando o que leio confirma a minha realidade.
O que sinto, primeiro. O que me fez sentir. E esse sentir exagerado, provocado por a minha carne ocupar tanto espaço, ressente-se. É atraiçoado. Sente como se lhe espetassem facas.
Fui ver o que era traição.
Trata-se duma quebra de expectativas. Uma quebra dum contrato social implícito, tácito. A minha ilusão é estilhaçada. Obriga-me a um luto. Perdi uma figura querida. O meu amigo imaginário. Porque o real obriga à correção da informação prévia.
Perdi uma figura, e juntamente, a minha relação com ela. Perdi parte de mim. Fiquei com feridas. Pedaços da minha carne foram arrancados, e agora têm de recuperar, de cicatrizar, de sarar. Saíram sem se despedir de mim. Não se desprenderam como uma folha morta, outonal, que cai no chão alegrando a rua.
De que é feita a minha carne, afinal? É feita do que acredito ser eu mesma. Todas as ligações irreparáveis e insubstituíveis. Todos esses fios, esses micélios. Algo como um fungo que não tem forma, tendo inevitavelmente uma forma, que transgride constantemente. Um excesso proliferativo de conhecimento infinito que, apesar de fúngico, não é canceroso. É de natureza benigna, quero acreditar.
É o meu espaço – autos. O meu próprio planeta no espaço. E o que há no espaço? Há meteoros que chocam. Não sou capaz de criar uma órbita muito estável. Sou um planeta com uma enorme gravidade, talvez de mais, a agregar o seu núcleo, mas incapaz de manter os gases na ordem. Os objetos na ordem. Produz-se caos.
Esses objetos flutuantes resultam principalmente de destroços internos. Uma espécie de vida voadora, fantasias próprias dum ser que se crê inventivo, capaz de animar – gerar vida. Uma pessoa não ilusionista, mas iludida – e, consequentemente, sempre sujeita a ser desiludida, dececionada.
A deceção obriga-nos a corrigir a realidade. Entram coisas no ar que dizem respeito a outros, que, de forma violenta, temos de encarar. E a realidade é feia. Pelo menos esta parte. A das emoções negativas, feridas de humilhação, capazes de mortificar. As emoções negativas são aversivas. Mas sem encarar as emoções negativas, é impossível corrigir o social. Numa hierarquia social, não é simplesmente possível escolher o que é mais justo, ou ambientalmente certo. O social vem primeiro. E quem diz o social, diz as órbitas dos planetas – todos esses destroços, que ao invés de serem produzidos no interior, configuram uma roupa e já não uma pele – foram peças escolhidas para conferir uma auto-defesa. Uma proteção dessa camada semiótica configurada para interagir com outros seres – sendo vigilante de que podem ser capturados, humilhados, ostracizados, mortos, por outros.
Esta camada excessivamente social – tipicamente para atrair a atenção, satisfazer a fome de respeito e reconhecimento, é um arsenal e um espaço de trocas, de mudanças de roupa, e não mudanças de pele, para cada contexto, como quem escolhe armas para uma luta. Como quem escolhe vestidos para uma ocasião.
Eu tenho de me imaginar para desempenhar esse papel.
Eu tenho de me ver, para saber como vão ser os meus movimentos, o meu olhar, a forma sentimental de interagir com o outro. Porque todos os seres nus me parecem capazes de ser amados, na sua existência. Individualmente todos me interessam, todos juntos desprezo-os vilmente. Criaturas que renegam a sua biologia, a sua própria carne, para se enfeitarem de fantasias que são versões exageradas de si mesmos numa tentativa vã de esconder as suas feridas. Primeiro eu não via essas feridas – essas quebras irreparáveis de contratos sociais como acreditar que se pode ser amado – que há pessoas que não nos traem.
Os comportamentos das pessoas apareciam-me como inexplicáveis. Irracionais. Como podem não se envolver com os objetivos que explicitam? Como suportam a dissonância? Como suportam bater no peito na missa, cheios de pecados para os quais encontraram bodes expiatórios para toda a roupa não colapsar, porque se afeiçoaram a ela – porque traíram a sua própria carne. Ou talvez não. Talvez, para eles, para todos esses outros, simplesmente, desde muito cedo, outros tenham sido essenciais na sua formação. Talvez os outros tenham essa consciência de que podem ser mortos por outros seres humanos, ou a noção de que não sobrevivem sozinhos. Seja como for, olham para os outros e estudam-nos para se formarem. Interessam-lhes objetos transacionáveis, capazes de saírem de uma órbita e irem integrar outra, reforçar outra. É um espaço de construção. O espaço dos objetos.
O meu espaço é povoado de seres fantásticos.
O meu espaço é constituído pelos meus amigos imaginários.
Como eu imagino os meus amigos.
Só há uma pérola se há porcos.
Os porcos vêem-se a eles mesmos como traidores, embustes, crianças com roupas de adultos, a tentarem passar despercebidos num jogo onde podem ser desapossados das roupas.
Eu vejo-os como eles podiam ser. A melhor versão deles próprios.
Aprender que as pessoas são menos inteligentes do que penso, que se valorizam menos do que deviam, que escolhem não levantar a cabeça porque têm medo, que preferem passar desapercebidos e vivos.
Aprender que as pessoas adoram interagir através de objetos. Que trocam títulos e proxys, como quem dá rebuçados. Objetos inanimados. Objetos vistos, ou tratados, como inanimados.
Ter de enfrentar a dor de ver este monstro social, esta matriz que para mim é feia, feíssima, incapaz de ser amada, esta cola suja entre seres humanos, que se juntam para trocar objetos, sempre com medo de serem tocados, porque foram ou podem ser magoados.
Saber que não tinha de ser assim, que há uma cola limpa. Que essa cola limpa é através de práticas compartilhadas, duma camada de necessidades iguais, nunca as mesmas, mas capazes de nos dar a experiência dum sentir coletivo, capaz de dar valor – ancorada em objetos (con)sentidos.