Nasceu em Moçambique, mas diz pertencer a Coimbra, a cidade onde cresceu e onde iniciou a formação em teatro. Começou por integrar o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC) e, um ano depois, formou-se em atores no Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral e no Instituto Franco-Português.
Foi atriz residente do Teatro ‘O Bando’ e depois tornou-se atriz freelancer, tendo trabalhado com vários encenadores. No cinema, destacou-se em ‘Corte de Cabelo’, de Joaquim Sapinho, ao vencer o prémio de Melhor Interpretação Feminina no Festival de Cinema de Genebra. Experimentou a dança, a música, a locução, a encenação, a escrita. Mas é no teatro onde se sente plena, embora questione, frequentemente, esta “estranha forma de vida”.
– Começo pelo seu “calcanhar de Aquiles”, a cidade onde cresceu e onde diz pertencer. Porque veio para Coimbra?
– Nasci em Moçambique e depois do 25 de Abril, como muitos portugueses, os meus pais decidiram voltar. Fomos para a casa do meu avô numa aldeia perto de Coimbra porque o meu pai, que era professor (agora está reformado), tinha ficado colocado numa escola em Cantanhede. Depois o meu pai foi para uma escola em Coimbra e mudámo-nos para a cidade do Mondego. Apesar de ter nascido em Moçambique, quando me perguntam de onde sou, digo sempre que sou de Coimbra. Como não tenho qualquer memória de Moçambique, pois vim para Portugal com pouco mais de um ano, Coimbra tornou-se no “segundo” berço. Já fui várias vezes a Moçambique e nunca tive um “déja vu” ou uma epifania onde sentisse que a minha identidade estava ligada àquele lugar. Refiro-me a Coimbra como o meu “calcanhar de Aquiles” porque quando fui estudar teatro para Lisboa, pensei sempre que depois regressaria a Coimbra onde iria formar uma companhia de teatro, mas depois a vida levou-me a ficar em Lisboa.
– O que recorda desse tempo? Como era a cidade?
– Recordo sobretudo o período da adolescência numa Coimbra efervescente com os concertos dos Tédio Boys (que acabavam muitas vezes com a polícia no fim); as performances dos Objectos Perdidos; os ciclos de cinema de autor da Cinemateca no Gil Vicente; a mostra de dança contemporânea; os concertos organizados pelo meu grande amigo Gonçalo Barros que levou os Young Gods a atuar pela primeira vez em Portugal e em Coimbra; os encontros de fotografia com as conferências no hotel Astória ou no Avenida que proporcionavam a proximidade com os artistas. Enfim, toda uma cultura underground bastante exposta e muito dinâmica e que agora vista à distância, percebo que se encontra associada à vivência dos anos 80 de um país em “desconfinamento” depois de tantos anos de fechamento causado pela ditadura. Mas do que me lembro mais, é das quartas-feiras à tarde no States onde dei os meus primeiros beijos e das tardes passadas a conversar no (café) Moçambique ou no (café) Santa Cruz. Eu andava no Dona Maria e quando saía das aulas, antes de ir para casa, ia ao Moçambique onde havia sempre alguém conhecido, ou chegava alguém que conhecia, e de repente, éramos seis à volta de uma mesa em grande converseta.
– A vida, entretanto, levou-a para outros caminhos. Tem sido feliz?
– Devido à centralização de poder, de recursos económicos, culturais, etc., na capital, e querendo trabalhar como atriz, naturalmente Lisboa apresentou-me muito mais oportunidades do que Coimbra. É natural que todas as capitais tenham uma maior oferta cultural, mas infelizmente no nosso país existe uma assimetria muito acentuada entre Lisboa e outras cidades. Essa assimetria tem de ser corrigida, ou pelo menos compensada, de forma que possa haver possibilidades de desenvolvimento cultural, e, claro, laboral e social, acessíveis a todos. Quando isso acontecer, e espero que ainda seja no meu tempo de vida, acho que me trará uma grande felicidade, porque será um sinónimo de um país mais democrático.
– Faz parte direção do Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE), um setor caracterizado pela precariedade que viu a sua agenda esvaziar-se com a pandemia. Como antevê o futuro próximo do setor cultural e dos artistas?
– A pandemia é como uma lupa, veio expor as fraturas que já existiam na sociedade e uma delas é, precisamente, a “invisibilidade” em que a maioria de nós, trabalhadores das artes do espetáculo, da música e do audiovisual, sempre fomos submetidos através da precariedade criada pela contratação indevida. A pandemia colocou na agenda política a necessidade de inscrição das nossas atividades profissionais naquilo que até agora se encontram privadas: o acesso a direitos básicos como quaisquer outros trabalhadores. O futuro do setor, a curto e médio prazo, depende muito dessa inscrição que tem de ser feita agora, na pior altura é verdade, mas talvez essa seja uma característica portuguesa…só quando a casa está a cair é que se começa a fazer obras.
– Diz que, por vezes, é mais movida pela fúria do que pela política, sobretudo quando começa a sentir demasiada impotência. Tem sido assim no último ano?
– Eu disse isso? Devia estar furiosa quando disse isso! Com o tempo aprendi que há que saber ser perseverante e para isso não devemos deixar que sejam as emoções a “mover-nos”. Não quero dizer com isto que as emoções devem ser reprimidas ou controladas. Pelo contrário: devem ser expressas, vividas, manifestadas, houve uma substância química que o nosso hipotálamo libertou e que depois acaba.
– Participou em séries, telenovelas, teatro, cinema. Dança, até. Onde se sente plena?
– No teatro.
– Como se “desprende” de si para se entregar ao movimento, à representação e à dança?
– Eu nunca me “desprendo”. Há várias maneiras de olhar ou entender a chamada arte da representação, quer de quem faz, quer de quem vê. Uma delas é essa de se “desprender” ou de criar uma nova identidade, uma personagem que nada tem que ver connosco. Outra maneira é totalmente oposta a essa: nunca nos desligarmos ou “desprendermos” de nós próprios. Pelo contrário: ligamo-nos ainda mais, procuramos o que existe em nós que pode estabelecer várias ligações com aquela matéria.
– Foi vocalista de uma banda, os Coty Cream. Como foi essa experiência?
– Foi uma experiência muito boa. A música é a maior e melhor terapia de todas! Os ensaios de teatro são muito organizados, muito estruturados e muito técnicos. E os ensaios da banda eram muito mais orgânicos, fluidos. Os músicos vão chegando e vais começando a tocar, ou a cantar, e ninguém precisa de falar muito, até que de repente alguém diz: “vamos pegar daquela parte.” E começa-se sem se ter “começado”. Curiosamente, lembro-me que evocou em mim algo que sempre esteve mais relacionado com Coimbra e que se manifestou na escrita das canções com letras entre o surrealismo e a provocação.
– Carla Bolito: como se define?
– (ri) Talvez a pergunta mais difícil de responder. E talvez por isso tenha vindo parar ao teatro… por não saber bem quem sou ou por questionar frequentemente a minha existência, esta “estranha forma de vida”.
– Está envolvida em algum projeto atualmente? O que gostaria de fazer no futuro?
– Vou filmar com o João Botelho na sua incursão ao universo do Alexandre O’Neill e estou a aguardar pelo reagendamento dos Artistas Unidos de um espetáculo que era para ter estreado em fevereiro no Teatro da Politécnica. Trata-se de uma peça de um autor grego contemporâneo chamado Andreas Flourakis, intitulada “Exercícios para joelhos fortes”, onde além de encenar também estou como atriz. Gostaria de continuar a encenar com mais regularidade. E também gostaria de escrever.