Carlota Lagido, mulher com “curvas, mamas e rabo”, tinha um físico que não obedecia aos critérios hegemónicos do que deveria ser um corpo de bailarina. Mas aos 17 anos, quando foi para Nova Iorque, abriu-se para novas formas de dança”. Foi das primeiras a ir, numa vaga que, nos anos 1980, daria origem à Nova Dança Portuguesa. E o corpo, até ali manietado pela hegemonia da perfeição, soube destruir a leveza etérea da dança, aproximando-se do chão, da queda, da falha. O corpo era, afinal, invencível.
Bailarina, coreógrafa, figurinista, Carlota Lagido viveu em Luanda, São Paulo, Nova Iorque, mas sempre quis viver no campo. Hoje é em Alfafar, Condeixa-a-Nova, que dá corpo ao seu projeto de vida: o Lugar do Meio é um espaço de residências artísticas, de trabalho e festas, de floresta e liberdade. Um espaço sem amarras onde o palco é terra e onde é possível criar e dançar até que o corpo lhe doa.
– Quando é que o seu corpo sentiu que era, afinal, a dança?
– Aos 13 anos percebi que queria dançar, fiquei fascinada com algumas amigas que faziam ballet. Quando experimentei pela primeira vez percebi de imediato. Antes disso, quando era criança, ficou-me marcado um tutu azul e várias sapatilhas de ponta que pertenciam à minha mãe, que também tinha sido aluna da Margarida de Abreu. Eram os meus brinquedos.
– Depois de experimentar o clássico na escola de Margarida de Abreu, foi para o Ballet Gulbenkian. Porque não continuou na área clássica?
– Eu não fui para o Ballet Gulbenkian, eu frequentei os Cursos de Formação Profissional do Ballet Gulbenkian. O Ballet Gulbenkian não foi uma companhia de dança clássica, mas sim de neoclássico e dança moderna. Apesar do Ballet Gulbenkian aceitar ainda assim corpos diferentes, os requisitos físicos eram muito parecidos com uma companhia de clássico. Uma das razões que me levou a não continuar na dança clássica não se deveu a falta de técnica, mas teve a ver com o facto de o meu corpo não corresponder aos requisitos. Apesar de não ser gorda, num critério de normalidade, o meu corpo não correspondia aos critérios hegemónicos do que seria um corpo de bailarina. Não era esquálida e tinha curvas, mamas e rabo. De certa forma fui vítima de bullying “gordofóbico” e misógino por parte de alguns professores, durante alguns anos, o que marcou determinantemente a minha relação com o meu próprio corpo. Posso dizer que foi e é um inferno, porque está cá. Quando se diz a uma miúda de 16 anos que não se sabe como é que os rapazes olham para ela, ou como é que ainda tem namorado, com o corpo que tem, entre muitas outras alarvidades, estão a criar um trauma. Isso aconteceu-me, em público. Esse trauma está cá, reflete-se ainda hoje na minha autoestima como pessoa, como mulher. Quando fui estudar para Nova Iorque a minha perspetiva alterou-se bastante, pois tive acesso a outras técnicas, abordagens e aceitação de outro corpo da dança. Houve uma grande libertação e apesar de frequentar aulas de técnica clássica diariamente, tive a oportunidade de explorar outras formas de dança. Depois, em 1987 conheci o Francisco Camacho em Lisboa, com quem comecei a trabalhar, e trabalho até hoje, aí, tudo mudou definitivamente e a liberdade aconteceu.
– Numa entrevista disse que se sente como uma bailarina em autodestruição. Sente que prejudicou o seu corpo?
– Os anos 90 foram anos de rutura, foram anos muito punk na relação do corpo com a dança, tanto no rebentar do Movimento da Nova Dança Portuguesa como no resto da Europa. Havia uma tendência para a destruição da leveza etérea da dança, foi isso que fizemos, destruímos o etéreo e aproximámo-nos do chão, da queda, da falha. O corpo atirava-se para as situações mais extraordinárias. Dançávamos em todo o lado, não interessava o chão, cimento, terra, areia, tudo era possível, o corpo era invencível e aceitávamos fazer tudo.
Hoje, quando penso que disse que era uma bailarina em autodestruição, entendo que essa afirmação contém nela a minha revolta com o corpo, com a hegemonia do corpo perfeito, da dança perfeita e é acima de tudo uma afirmação autobiográfica.
Se eu prejudiquei o meu corpo? Sim, destruí o meu corpo, tenho várias lesões há mais de 20 anos, mas estou bem, continuo a conseguir dançar.
– A Carlota foi das primeiras a ir para Nova Iorque e fez parte de uma vaga que, nos anos 1980, daria origem à Nova Dança Portuguesa. Tinha 17 anos.
– Sim, cheguei a Nova Iorque em agosto com 17 anos e fiz 18 anos em Setembro. Como disse antes, a experiência de Nova Iorque foi reveladora de muitas possibilidades e foi a descoberta para muitos de nós. Eu fui para Nova Iorque com o João Fiadeiro. Fomos passar um mês para fazer cursos de verão e ver como era. Na última semana telefonámos aos nossos pais a dizer que ficávamos. O Rui Horta já lá estava e deu-nos algum apoio inicial. Posso dizer que Nova Iorque foi uma experiência, não só no contexto da dança, mas também num contexto vivencial. Nos primeiros meses tivemos de arranjar trabalho. O nosso primeiro trabalho foi num estúdio de dança a fazer limpezas pois éramos bolseiros e simultaneamente trabalhávamos numa fábrica de impressão de t-shirts. Aquelas t-shirts “I love New York”, fomos nós que fizemos. LOL. Trabalhávamos durante a noite, de manhã saíamos diretos para o estúdio. Não me lembro se dormíamos, mas lá está, éramos invencíveis e corria-nos o Fame nas veias. Lembro-me de trabalhar em tudo, cafés, lavandarias, mercearias, modelo de desenho, babysiter. Foi muito construtivo também nesse aspeto. Passado uns tempos de lá estarmos, chegou a Filipa Pais, depois o Sérgio Pelágio, o Bruno de Almeida, o José Laginha. Nós fomos a primeira leva de “new yorkers” portugueses, de seguida veio o Francisco Camacho, a Vera Mantero e muitos outros.
O Movimento da Nova Dança Portuguesa surge por essa altura, já todos de volta a Lisboa, por volta de 1987. Havia uma movida, a experiência de NY, os encontros Acarte, o impulso disruptivo, fizeram parte da poção que alimentou o surgimento do MNDP e acima de tudo um confluir de experiências e desejos de um determinado grupo de pessoas. Havia a Paula Massano, o Francisco Camacho, a Margarida Bettencourt, o João Fiadeiro, a Joana Providência, a Filipa Pais, a Clara Andermatt, o Paulo Ribeiro, a Mónica Lapa, o José Laginha, o Pedro Curado, a Aldara Bizarro, o André Lepecki, o Paulo Abreu…
– Como começou a ser figurinista?
Comecei a desenhar figurinos em 1988, no primeiro trabalho do Francisco Camacho para Companhia de Dança de Lisboa, o Inventário em Cinco Andamentos. Antes disso já desenhava, e desenhava roupa, fazia coleções de roupa por prazer. Acho que essa influência veio da minha mãe que trabalhou no mundo da moda nos anos 60. Acho que essa vertente minha vem também do desenho. Sempre desenhei. Depois fiz um figurino em 1991 para o solo da Vera Mantero, Uma Rosa de Músculos, que foi bastante emblemático na dança e a partir daí nunca mais parei. É uma das minhas atividades profissionais mais importantes, em paralelo com a criação coreográfica e o trabalho como bailarina e performer. Posso dizer que estou bastante cansada de o fazer, antes, os coreógrafos olhavam o figurinista como um artista colaborador que contribuía com a sua perspetiva em relação às peças. Havia uma confiança no figurinista e na sua visão que está a deixar de existir. Uma parte significativa dos coreógrafos de hoje com quem tenho trabalhado, já tem uma pré conceção do figurino, o que é bastante castrador. É preciso fazer um esforço tremendo e exercer manobras várias de persuasão para convencer um criador a aceitar uma ideia. É como se nos encarassem como simples executantes das suas ideias. É muito desmotivante. Acho que os coreógrafos que querem trabalhar as suas ideias deviam saber fazer figurinos e deviam contratar costureiras para os executar. Neste momento não tenho interesse em aceitar mais trabalhos com essas premissas e só quero trabalhar com quem está aberto a aceitar que o figurinista é um colaborador com visão e perspetiva artística e conceptual. De outra forma corre muito mal, prefiro parar.
– E esse gosto por pássaros? Perpetuar-lhes o voo, o movimento do corpo através do desenho … Esse gosto é recente?
– Eu não desenho pássaros em voo. Desenho-os estáticos, no momento em que descem do seu lugar divino e se agarram a troncos ou ao solo. Desenho-os quando são táteis e observáveis. Os pássaros já estão no meu imaginário há muitos anos, fazem parte das minhas peças, pássaros e limões. Tenho um grande fascínio, olho para eles e vejo dinossauros com asas, pequenos deuses dinossauros com asas. Interessa-me muito esta ideia jurássica que faz uma ligação temporal entre mim hoje e a existência há milhões de anos. Quando vejo um determinado pássaro ou quando os consigo fotografar, tenho uma descarga de adrenalina, é muito excitante, traz-me uma sensação de felicidade e gratificação imediatas. Há uns anos, numa fase emocional complicada, fui quase “curada” por uma pega-azul que passou por mim.
Só comecei a desenhar pássaros durante o primeiro lockdown em 2020. Desenhar pássaros é meditativo, durante várias horas, todo o meu foco e energia estão na observação, na relação entre os meus olhos, o meu braço, a minha mão e o papel, como se tudo tivesse uma ligação invisível. Tudo é pormenor e minúcia. Tudo é silêncio e paciência. É bastante terapêutico.
– Esteve na origem da iniciativa “Ação cooperativista de apoio – Artistas, Técnicos, Produtores”? A associação tem conseguido cumprir o seu objetivo?
– Sim, fundei a Ação Cooperativista no primeiro lockdown. Neste momento já não faço parte, sou uma espécie de membro honorário fundador. Para mim foi muito difícil aguentar a pressão e exigências deste tipo de atividade política. Acho que não tenho estofo emocional. A coisa passa a dominar tudo na nossa vida quotidiana, é muito intenso e desgastante. A Ação Cooperativista tem conseguido cumprir os seus objetivos, aliás tudo o que se passou desde o início da sua fundação ultrapassou largamente as expectativas iniciais. Acho que a Cooperativista funciona muito bem em termos de funcionamento interno, é um coletivo de pessoas que trabalham em regime de voluntariado. É organizado maioritariamente por mulheres e alguns homens com muita força. Não há hierarquias, é rotativo, há muita liberdade de pensamento e ação mas sempre em uníssono e sempre em função de cada objetivo. Penso que este movimento cumpriu um papel muito importante tanto na agregação de união setorial como na dinâmica de diálogo com o governo. Noutro sentido, o grupo no Facebook funciona como fórum de discussão que permite a muitas pessoas da área cultural exporem as suas dúvidas e dificuldades. Muita coisa aconteceu porque a Cooperativista cumpriu o seu papel de pressão. É um coletivo barulhento, às vezes incomodo.
– O seu último projeto, Mina, deveria ter estreado em palco em março de 2020. Devido à pandemia, o projeto transformou-se num filme, feito por um coletivo de mulheres. Porquê só de mulheres?
– Primeiro, porque simplesmente desejei trabalhar com mulheres e por ser um projeto feminista, o lugar de fala pertence exclusivamente a mulheres, sejam cis ou trans. Não digo que não existam homens feministas, existem e faz sentido, mas interessou-me criar esse espaço seguro só com mulheres, interessou-me um espaço de visibilidade exclusivamente feminina.
– Viveu em Luanda, São Paulo, Nova Iorque e Lisboa. Como acabou a viver em Alfafar? Conta que um dia, aos 16 anos, olhou para a floresta e gritou que um dia iria viver no campo.
Sim, olhei para uma floresta em Sintra e disse isso mesmo. Mas foi preciso esperar 40 anos para isso acontecer verdadeiramente.
A casa de Alfafar é uma pequena quinta que foi vista por mim e pelo Nuno Patinho pela primeira vez em 2018. Foi amor à primeira vista, vimos muitas outras casas, mas esta tinha algo que nenhuma das outras tinham. Esta não tem fantasmas, nunca foi habitada, nós seremos os seus primeiros fantasmas, para além de Alfafar ser rodeado de floresta autóctone. Passámos o ano de 2019 em processos bancários de tentativa de compra mas só durante o lockdown, quando pensámos que a partir daí tudo seria impossível, é que recebemos a notícia que o nosso banco nos concedia o empréstimo. Ainda hoje pergunto como foi possível e ainda me belisco para ver se é verdade.
– Fale-me do Lugar do Meio. É o seu projeto de vida?
– Sim, o Lugar do Meio é o meu projeto de vida. O primeiro Lugar do Meio começou em 2015, em parceria com o Antoine Pimentel, também naquela zona. O Antoine concedeu a casa ateliê dos seus pais, Colette Vilatte e António Pimentel, ambos artistas, e ali fizemos um pequeno estúdio e instalações para receber artistas em sistema de residências. Foi muito bom como primeira experiência e tivemos alguns artistas bastante interessantes como Andresa Soares e Bruno Humberto, João Ferro Martins e Alexandre Pieroni, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Miguel Bonneville, João Costa Espinho, Tiago Cadete e David Marques, Tiago Vieira. Quando esta parceria terminou, voltei para Lisboa, e este Lugar do Meio ficou em suspenso durante quatro anos até chegar a Alfafar.
O projeto Lugar do Meio tem agora uma dimensão maior, já não se trata de um lugar pequeno. Tem várias casas, um terreno grande. Tem múltiplas possibilidades. Não só é a minha casa, do Nuno, do meu filho Vicente, como é uma casa aberta à comunidade, não só artística como local. Na vida de aldeia, as relações são muito diferentes, existe um sentido de comunidade e partilha muito fortes, interessa-me muito isso, interessa-me muito desenvolver essas relações e vivência. Não me interessa de todo uma postura colonial de alguém que vem de fora impor outras visões, nem me interessa despejar arte e cultura na comunidade. Não é isso, de todo. A única visão que queremos, não impor, mas estimular, será um alerta para uma vertente conservacionista da arquitetura vernacular local, como os maravilhosos muros de pedra, as casas e a preservação da floresta autóctone e dos carvalhos centenários e outras árvores. Nós fazemos lá arte, sim, é o nosso espaço de criação, é um espaço de festa também, é um espaço aberto a todas as pessoas da comunidade artística. As pessoas de Alfafar estão lá também, estão connosco nas nossas interações diárias, nas partilhas de couves, ovos e frutas, nas partilhas das suas sabedorias fitoterápicas e histórias outras, nas ajudas que damos uns aos outros. Por exemplo, assim que for possível vou fazer um workshop de apicultura com o vizinho apicultor Mário. Quero muito fazer isso. Interessa-me fazer parte do lugar e isso começa nas relações que se estabelecem dia a dia. Tivemos muita sorte, nunca nos sentimos forasteiros e parece que a aldeia está feliz com a nossa presença. Entretanto existem lá mais duas pessoas, uma delas artista, de Lisboa, a viver e com relações familiares antigas com Alfafar. Foi uma surpresa, para variar, Portugal é um penico. Estou muito entusiasmada com estas dinâmicas.
O Lugar do Meio será também um espaço de residências artísticas?
Como ainda estamos a fazer algumas obras, ainda não abrimos open calls para residências ou outras atividades artísticas, mas já tivemos a residência da minha performance de desenho “Silvestre” e rodagem do filme do meu projeto Mina e uma outra residência da demo. Neste momento estou a preparar o meu solo Mina, “Song of myself”.
Entretanto estamos em fase de constituição da associação O Lugar do Meio, que não só está vocacionada para produção e realização de atividades de criação, performativas e residências de todas as disciplinas artísticas desde dança a literatura, como também estará muito vocacionado para questões ambientais e conservação da natureza. O que me interessa muito neste momento é encontrar o ponto onde as práticas artísticas e as questões ambientais convergem.
Neste momento, o plano a muito curto prazo é que aquele lugar seja o meu local de vida e trabalho a 100 %. Estou muito perto.
– É possível deixar de dançar?
Sim, é possível deixar de dançar e é possível voltar a dançar.