Número 32

27 de Maio de 2023

DOIS PARES E MEIO DE ASAS

Carta aberta às minhas filhas

MARTHA MENDES

Não tenho pretensões a ensinar-vos aquilo que só podem aprender por vossa conta. Também eu mantenho tantas dúvidas como no início. Continuo a aprender e estou certa de que, por muito que a mãe viva, essa viagem ficará a meio. Sei que nenhuma sebenta substitui as quedas e as nódoas negras, mas não posso evitar querer cair por vós. Nada feito. A vida não perdoa às filhas o que também não perdoou às mães e, se calhar, é mesmo assim que deve ser: enquanto uns caem outros levantam-se – deve ser por isso que o mundo não tomba. Há o amor, que é o maior sentimento do mundo. Podem tentar convencer-vos do contrário: que há mais ódio do que amor. Não acreditem e, por favor, não se arrumem do lado errado. Os bons continuam em maioria. E os outros, na sua maioria, estão só zangados. Se conseguirem perceber porquê talvez os possam salvar – e, com isso, salvar-nos a todos. Há o amor, que é o maior sentimento do mundo. E, depois, há o amor pelos filhos. Sobre o amor pelos filhos, não há nada que a mãe vos possa dizer que o Herberto Helder não tenha dito muito melhor: os filhos são a viagem “por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo, e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor”. Vocês são esse amor do princípio do mundo – o amor todo e primeiro.

Cuidarmos uns dos outros, amar e ser amados, é a grande finalidade da vida. Não se distraiam: no fim, só somos o que fomos uns para os outros. Toda a gente erra, mas a crueldade consciente é, a par com a desonestidade, a única coisa que não vos perdoaria. Sejam gente. Façam o que está certo, mesmo quando ninguém está a ver. Sejam justas. Os julgamentos são uma estrada de dois sentidos: com a mesma severidade com que julgam serão julgadas. Mesmo as pessoas mais maravilhosas têm dias maus. Não se esqueçam disso. A capacidade de nos pormos no lugar do outro é das coisas que mais nos humaniza. Sejam tolerantes – com os outros e convosco: pessoas boas fazem coisas más e pessoas más fazem coisas boas. A complexidade humana é a maior maravilha do mundo. Visto ao perto, ninguém é normal. Felizmente. A normalidade é só um conceito estatístico. As diferenças tornam a vida mais colorida.

Ser normal é tão desinteressante como ser perfeito. Mas é preciso darem o vosso melhor. Ponham o que são em tudo o que fizerem, como aconselhou o poeta. Apaixonem-se pelo vosso trabalho. Se deixarem de o amar, procurem outro. Nunca deixem de estudar. Não percam a curiosidade. Leiam. Leiam poesia. Há nela respostas que não encontrarão em nenhum outro lugar. Viajem! Quem viaja ganha mundo e não há nada mais precioso do que ver para lá das montanhas. Vão ao cinema e ao teatro. Oiçam boa música. Mantenham-se humildes: quando não souberem, perguntem. Se continuarem curiosas nunca vão envelhecer. O trabalho compensa. Trabalhem muito, mas saibam descansar sempre que precisarem (descansar não é desistir). Vocês não são de ferro – nem têm de ser. Arrisquem. Não tenham medo de estar vivas. Como dizia o Avô Dinis: quem tem medo compra um cão. No fim, arrepender-se-ão mais do que não fizeram, do que daquilo que fizeram.

As palavras são a coisa mais bonita do mundo, mas as vossas ações são o que melhor fala por vós. Não prometam coisas que não podem cumprir. Tratem todos por igual e toda a gente bem, cada pessoa é um potencial amigo. O mundo também se muda nas pequenas coisas do dia a dia: sorriam a quem vos serve o café, agradeçam, ofereçam ajuda, elogiem. Um mundo mais generoso será, necessariamente, um mundo melhor. Empatia gera empatia. Be nice to people. Não deixem nada de bom por dizer – nunca sabemos quando é a última oportunidade de o fazer. Mas se o que tiverem para dizer for mau, talvez valha a pena pensar duas vezes. A memória das palavras duras não se apaga. Perdoar e esquecer é um favor que fazem a vós mesmas. Mesmo que não saibam dançar, levantem-se e dancem. A vida muda num instante: um “até já” pode, em segundos, transformar-se num “adeus”. Procurem deixar uma memória feliz – é das poucas coisas que podem controlar.

Primeiro raízes, depois asas: é esta a ordem. A vida é curta e passa depressa. Foquem-se no essencial. Os abraços curam tudo e as pouquíssimas coisas que os abraços não curam (sozinhos) o tempo cura. O amor vai salvar-nos a todos. Mas se o amor falhar, o humor é um excelente plano B. Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe. Amanhã é um novo dia. O tempo é o que fizerem com ele: às vezes, 24 horas são para sempre, outras, 10 anos passam em 5 minutos. Não saiam à noite sem casaco, que o tempo arrefece. Comam fruta e legumes, façam exercício físico e hidratem-se. A água é o melhor medicamento do mundo: não tem contraindicações, faz bem a tudo e é barato.

Least but not the last: se o sapato não vos serve, não forcem. Mais tarde ou mais cedo, vai acabar por vos fazer bolhas. Isto é válido para tudo na vida: se não vos servir, não forcem. Não aceitem menos do que merecem. Vocês são lindas e inteligentes: não há nenhuma incompatibilidade entre estas duas qualidades. Podem gostar de saltos altos e de livros, de Chopin e Bruce Springsteen, de Seinfeld e de Almodóvar; podem gostar de ir à praia e à discoteca, a museus e a bibliotecas: quando estamos a falar de gostos também não há incompatibilidades. Têm direito a ser o que quiserem, desde que não façam mal a ninguém. Não deixem que vos rotulem. O mundo é complexo e nem tudo pode – ou deve – ser catalogado. Vocês têm uma voz. Façam-na ouvir, que são bisnetas, trisnetas (e por aí fora), de varinas e as cordas vocais de longo alcance são um bónus da nossa evolução genética. Ao longo da vida, vão

fazer-vos sentir, pelo menos uma vez, que não estão à altura porque são mulheres. A mãe tem lutado para combater isto, mas já não vou viver o suficiente para ver um mundo completamente igualitário. Vocês têm obrigação de continuar essa luta, que já a Avó Regina, antes de mim, travou – por vós e pelas minhas netas. A melhor forma de o fazerem é através do vosso exemplo: provem-lhes que não têm razão. Vocês conseguem fazer tudo o que quiserem. O amor nunca é errado, nem deve pedir licença: amem quem quiserem. Mas amem muito e exijam ser amadas na mesma proporção. O corpo é vosso – cuidem dele, respeitem-no e exijam respeito. A realidade acaba sempre por superar a ficção; a vida consegue sempre surpreender-nos. Essa é, talvez, a grande piada disto: a imprevisibilidade. It’s not about the destination; it’s about the journey. A memória é o nosso maior património pessoal. De tudo, o que fica são as memórias.

A mãe é imperfeita e falha muito, mas mesmo quando falha nunca deixa de vos amar, com o coração inteiro – e as vossas falhas em nada abalam esse amor todo e primeiro. Também sobre a maternidade continuo a tentar aprender, porque ser mãe é um work in progress e vocês não vieram com livro de instruções, mas muito do que sei aprendi convosco. Por isso – e por tudo, principalmente por esta viagem “por dentro do amor”, que é a mais bonita da minha vida – obrigada. Ser Mãe é, acima de tudo, ser exemplo e espero não vos falhar nisso. Eu – que nunca exigi que decorassem a tabuada – insisto para que decorem isto: devemos dizer “amo-te” sempre, de forma tão repetitiva quanto verdadeira. Há palavras que não é possível repetir vezes demais. Amo-vos, filhas.