Número 23

25 de Junho de 2022

CAIXA ALTA

Catarina Vitorino – “Ser mulher com deficiência faz parte da minha identidade”

ANDREIA M. SILVA

Psicóloga, estudante de doutoramento em Psicologia na Universidade de Coimbra, Catarina Vitorino é, sobretudo, uma mulher que nasceu com uma deficiência – o que não lhe retira o direito de decidir sobre os mais variados aspetos da sua vida, nomeadamente onde e como quer viver.

Há cerca de dois anos, quando começou a ter assistência pessoal, percebeu que os direitos humanos não podem ser hierarquizados por ordem de importância ou de incapacidade. E fez do seu corpo deficiente feminino um instrumento político que transporta uma mensagem de libertação.

“Ser uma mulher com deficiência traz um duplo peso, mas carrega consigo também uma longa história de luta e revolução da qual me orgulho muito”, diz. Este é o legado que quer cumprir com as maiores armas que alguém pode ter: com tenacidade e vontade de mudar o mundo.

– Catarina, fale-me um bocadinho de si. Que idade tem, onde nasceu, como viveu a sua infância?

– Tenho 27 anos, sou natural de Águeda e vivi toda a infância e adolescência nesta cidade. Tenho uma deficiência motora, congénita, o que significa que sempre me conheci desta forma e é esta a minha realidade desde sempre. Fui uma criança muito privilegiada, com um enorme apoio da família e das pessoas próximas. 

No entanto, como crianças com deficiência, crescemos sem referências e sem ver pessoas com as mesmas vivências que nós. A única informação que temos é aquela que nos transmitem de diferentes fontes, desde a comunicação social, até aos filmes e livros infantis que nos mostram na escola. Por esta razão, mesmo que de forma inconsciente, desenvolvemos a nossa personalidade dentro de uma comunidade na qual não nos revemos e isto tem, inevitavelmente, implicações na forma como nos vemos e nos comportamos. Ao longo da vida, em diferentes momentos, podemos duvidar da nossa própria existência, da legitimidade enquanto seres humanos, sentimos que não pertencemos a lado nenhum, como se não tivéssemos conspecíficos. A representatividade é fundamental neste sentido, para termos crianças mais preparadas para a diversidade e que se vejam a existir em todas as esferas do espaço público. Para que possam sonhar com um futuro com todas as possibilidades em aberto.

– A Catarina é psicóloga clínica. Onde se formou e o que faz atualmente?

– Fiz todo o meu percurso académico na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Atualmente, estou a realizar o Doutoramento em Psicologia Clínica e da Saúde no Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo Comportamental, na mesma instituição. 

– Alguma vez se sentiu uma mulher menos realizada ou feliz por ter uma deficiência?

– Ser mulher com deficiência faz parte da minha identidade e, como tal, tem uma grande influência nas minhas experiências de vida e naquilo que sou hoje. O orgulho que sinto em pertencer a esta comunidade vem de um passado (e presente) de resistência e luta pelo direito a existir e ter uma vida digna e plena, apesar da sociedade altamente opressora em que vivemos. Não posso dissociar o ser mulher do ter uma deficiência, pelo que as camadas sobrepõem-se e as experiências de opressão multiplicam-se. As barreiras que nos impõem vão desde as físicas/arquitetónicas, mais visíveis e fáceis de identificar, até às atitudinais ou institucionais, muito enraizadas a nível sistémico e difíceis de combater. Todos estes obstáculos impostos fazem com que, muitas vezes, eu não possa realizar todos os meus objetivos, ou não consiga atingir todo o meu potencial enquanto mulher e cidadã. Naturalmente, já me senti menos realizada ou feliz, não por ter uma deficiência, mas porque a sociedade não está preparada para me acolher e ainda limita e constrange grande parte da minha vivência, de formas muito diversas. 

– Fala-se muito em machismo, racismo ou LGBTQfobia. Mas existe ainda um grande desconhecimento em relação à palavra “capacitismo”. Porquê?

– A palavra “capacitismo” surge do inglês “ableism” e é ainda muito recente em Portugal, assim como a própria luta das pessoas com deficiência. Esta é uma forma de discriminação com base na (in)capacidade e resulta na opressão social contra pessoas com deficiência. Relativamente às outras formas de opressão, parece-me ser a mais difícil de identificar e combater, visto que é a mais enraizada e reproduzida de forma inconsciente. Como consequência da ideia de que as pessoas com deficiência são frágeis e incapazes, a nossa realidade tem a particularidade de despertar um sentimento de pena e caridade nas outras pessoas. Por esta razão, as atitudes capacitistas são, muitas vezes, revestidas por uma motivação altruísta, pelo menos à primeira vista. Deste modo, dificilmente se olha para elas de forma negativa, uma vez que o objetivo é sempre o de “ajudar”. Por outro lado, a invisibilidade e o silenciamento de que somos alvo desde sempre, impedem a discussão e mantêm o problema na sombra, tal como nós. Se a resistência e a luta pelos próprios direitos se faz, normalmente, de dentro da comunidade para fora, o facto de desenvolvermos a nossa identidade numa sociedade que nos diz que somos inferiores e não sabemos o que é melhor para nós leva a que interiorizemos esta narrativa e nunca nos sintamos dignos de ter uma vida plena. Todas estas nuances, quer do nosso lado, quer do lado das pessoas sem deficiência, perpetuam a desinformação e dificultam a disseminação desta palavra tão desconfortável que é o “capacitismo”.

– O anticapacitismo é querer tomar as rédeas da própria vida, decidir o caminho a seguir sem obstáculos? De liberdade, no fundo?

– O anticapacitismo é a luta contra uma forma de organização da sociedade que promove a desigualdade e a opressão. Parte da premissa de que qualquer pessoa tem valor intrínseco, independentemente da sua (in)capacidade, e promove uma libertação relativamente a um padrão ideal de produtividade/capacidade. No fundo, combate qualquer ato de discriminação, visto que, além de todas se interligarem e relacionarem entre si, o preconceito de incapacidade está presente em todos eles. 

Uma das expressões da luta anticapacitista é a filosofia de Vida Independente, que devolve a liberdade individual e a autodeterminação às pessoas com deficiência (aliás, direitos fundamentais da condição de ser humano), assim como a possibilidade de estas contribuírem para a sociedade na mesma proporção que as pessoas sem deficiência.

– Mas ao longo da História, a pessoa com deficiência sempre teve pessoas a falar, a decidir e a fazer por ela. Se não era a família, eram as instituições ou o Estado. Como mudar?

– A imposição constante de barreiras e obstáculos fazem com que as pessoas com deficiência tenham níveis muito baixos de participação cívica e política, ou seja, não lhes é dada a possibilidade de estarem presentes na criação de políticas que lhes digam respeito, muito menos de fazerem parte de movimentos sociais de luta pelos seus direitos. Até há bem pouco tempo, o destino dado como certo eram as instituições e, consequentemente, a segregação e a ausência do espaço público. Combater a exclusão social exige um trabalho conjunto e concertado de todas nós, pessoas com e sem deficiência. Por um lado, implica que nos seja dada a oportunidade de decidir sobre o nosso dia a dia e, mais do que isso, sobre o nosso percurso de vida; implica que tenhamos exatamente as mesmas oportunidades, direitos e acessos das pessoas sem deficiência. Mais do que nunca, é tempo de ouvir as experiências da comunidade na primeira pessoa e cumprir o lema da Vida Independente “Nada sobre nós sem nós”! Só a partir do momento em que se começar a dar voz às pessoas com deficiência, a ouvir o que têm a dizer e o que querem para as suas vidas é que se começará a olhar para elas como cidadãs plenas. Em última análise, aquilo que se pretende é que as pessoas com deficiência estejam representadas em todas as esferas da sociedade e tenham acesso a todas as áreas da vida.

– Como é que resumiria a sua história?

– Nasci com deficiência, cresci numa sociedade capacitista e, por isso mesmo, apesar de nunca ter sentido aquele tipo de discriminação explícita, agora olho para trás e vejo o capacitismo subtil e quase impercetível – o “capacitismo piedoso”. Também eu era (e sou) altamente capacitista, porque sou fruto de uma cultura e de uma sociedade que olha de lado e segrega para quem não corresponde aos padrões. Há cerca de dois anos, comecei a ter assistência pessoal, confrontei-me com a minha deficiência, conheci outras pessoas “iguais” a mim, criei referências e comecei a questionar o mundo em que vivemos e a refletir sobre todas as crenças que nos são transmitidas desde a infância. Assuntos relacionados com discriminação, desigualdade social e direitos humanos começaram a fazer parte das minhas conversas, dos meus pensamentos e da minha existência. Muita coisa mudou na minha vida desde então, mas a mudança principal fui eu própria. Consegui perceber-me enquanto mulher com deficiência, quem sou eu na relação com os outros e que papel têm os outros na construção da minha identidade. Com o desenvolvimento desta consciência política, entrei no mundo do ativismo e senti a responsabilidade de lutar pelos direitos das pessoas com deficiência e, na verdade, de todas as pessoas. Neste momento, integro uma organização inteiramente dirigida por pessoas com deficiência, a Associação Centro de Vida Independente, que tem como objetivo divulgar e implementar a filosofia de Vida Independente em Portugal. Tendo um caráter ativista, exige a criação de políticas para a deficiência e garante o seu cumprimento com base nos direitos humanos.

– Que sonho lhe falta cumprir?

– Aos 27 anos, ainda tenho muitos sonhos por cumprir. A nível individual, quero muito progredir na carreira enquanto psicóloga e investigadora. Mas, mais importante do que a minha própria existência, acredito profundamente numa sociedade livre de opressões e em que todas as pessoas possam expressar a sua identidade, sem medo de julgamentos. Pretendo lutar para que, um dia, a deficiência seja abordada, não com um “mas”, mas com um “e”. 

Catarina Vitorino