Número 41

13 de Julho de 2024

MEMORIALISMOS

Ce que je crois

A. E. MAIA DO AMARAL

Nestes «Memorialismos» tenho-me exposto quase sem filtros, havendo quem neles tenha ouvido propriamente a minha voz a falar (é um grande elogio) e quem me recrimine o excesso de sinceridade. Cada homem é as suas convicções mais profundas e nesta última crónica eu quero retratar-me de corpo inteiro, analisando aquelas que me têm acompanhado durante mais tempo. Fui buscar este título ao livro inesquecível de Louis Pauwels «Ce que je crois».


Convicções pessoais

Sempre me quis ver como um intelectual: preferia ler um livro a jogar à bola, julgando que a melhor parte de mim era a cabeça e não o corpo. Quando o meu irmão teve um derrame e ficou aprisionado num corpo cheio de limitações, eu valorizei muito a tragédia da sua cabeça boa num corpo doente. Há uns anos, contudo, aconteceu-me uma coisa que me fez perceber que talvez a cabeça não seja o meu melhor atributo. Voltei à China, onde vivi quatro anos sem nunca usar muito os pauzinhos, porque preferia a comida ocidental à chinesa. Numa saída à noite, entre reputados sinólogos, estava receoso de experimentar os apetitosos amendoins descascados e torrados com a cerveja Yanjing. Quando decidi arriscar o desaire, percebi que a minha mão sabia muito melhor apanhar os pequenos grãos engordurados do que a cabeça alguma vez acreditara. Afinal, a inteligência da minha mão tinha superado a da mente.

Mas foi preciso ficar doente para chegar a um equilíbrio, para perceber finalmente que de nada serve uma cabeça sem que a sustente um corpo saudável. E depois, fazer ginástica veio mostrar-me uma excelente consciência corporal, diz o meu PT que sou «um diamante em bruto», e que podia ter sido um atleta; talvez, se não tivesse preferido sempre as aulas de Filosofia às de Educação Física.


Convicções científicas

Toda a minha vida ouvi notícias sobre a descoberta iminente da cura para o cancro. Nunca acreditei que a indústria algum dia o permitisse, desde que toda a medicação necessária para tratar essas doenças desse mais lucro, como ainda acontece. Não sei se tenho razão, não estou por dentro dos desígnios da «big pharma» mas continuo a não acreditar nessa cura revolucionária, e muito menos na iminência da sua descoberta. Não porque a ciência não o consiga eventualmente, mas porque o financiamento não anda exatamente por aí.

Sempre acreditei que a Terra é uma entidade viva e consciente. Se definimos a vida pela complexidade, não tenho dúvida de que esteja viva, tal é a complexidade do seu funcionamento. Quanto à consciência, talvez ela se manifeste num «tempo longo» que não a torna imediatamente reativa aos nossos disparates, mas que é suficiente, por exemplo, para dificultar cada vez mais a previsão meteorológica. Apesar de termos muito mais ferramentas, as nossas previsões agora acertam menos do que há trinta anos. Quem me explica isto?

Se acreditei sempre em ciências exatas, nunca deixei de ter as maiores dúvidas acerca das chamadas «ciências sociais ou humanas». Um exemplo paradigmático será o estudo da pré-história: Émile Cartailhac consagrou as cavernas pintadas como realização artística do homem paleolítico. Veio o Abade Breuil e explicou-as como instrumentos de caça, manifestações de uma magia xamânica para propiciar a caçada e tal parecia explicar tudo. Depois, veio André Leroi-Gourhan com a sua teoria sexual e demonstrou que formas que ele considerou femininas dominavam os recessos mais profundos enquanto nas proximidades da entrada se situavam símbolos masculinos. E esta teoria, completamente oposta à anterior, também parecia explicar tudo das cavernas pintadas. Hoje parece demonstrar-se que são femininas a maior parte das mãos presentes na arte parietal e que tudo aquilo podia ser uma «arte pela arte», sem função. Isto quer dizer que, ainda hoje, não temos nenhuma explicação satisfatória. Eu continuo a pensar que as ciências sociais são apenas um sistema de crenças. Se a História fosse uma ciência, não deveríamos conseguir prever o futuro?


Convicções sociais

Sempre acreditei no discernimento, acreditei mesmo nalguma misteriosa sabedoria coletiva dos povos. Acreditava que o tempo traria, se não um verdadeiro apreço pela democracia, pelo menos uma repulsa do autoritarismo e das limitações à liberdade individual e um maior respeito pelo outro e pela diferença. Estava completamente errado, como se mostra pela deriva política e pela crescente generalização de crenças irracionais. Ao contrário do que eu acreditava, não houve progresso.

No final dos anos 70, eu já acreditava (obrigado, Afonso Cautela!) que não existiam recursos para o nível de vida que nos queriam vender. Nessa época, já os Estados Unidos da América consumiam 50% dos recursos disponíveis o que deixava evidente que nunca o mundo todo podia aspirar a viver num «American way of life».

Digo há 30 anos algo que hoje parece voltar a ser crença generalizada: que a nossa geração vive muito pior do que as gerações anteriores. Basta-me olhar para o caso da minha família. O meu pai era um Técnico Superior da Função Pública, como eu, e teve cinco filhos. A minha mãe nessa altura não trabalhava. Moraram em Oeiras e eu fiz a pré-primária no St. James School. Depois, ele foi trabalhar para a Câmara de Matosinhos e fiz a primária no Colégio dos Maristas do Porto. Se eu tivesse filhos o meu ordenado não permitiria dar-lhes nem metade do que o meu pai me conseguiu dar a mim. E se pensarmos nas gerações anteriores, de proprietários rurais, apesar da inconstância dos seus rendimentos, viviam talvez mais desafogadamente do que os meus pais viveram, alguns deles até «à lei da nobreza», como então se dizia. Com a minha semanada de 100 Escudos nos anos setenta, afinal eu era rico sem saber. E confesso que descer de patamar me tem custado!