Entrei no cinema a achar que era a pior pessoa do mundo. O desmazelo com que trato a minha pele, a minha roupa, as minhas imagens. Esperei pelas personagens para me redimir e elas apareciam como memórias cortadas à faca, arrancadas de um animal pré-histórico, da idade da minha infância. A ficção tem esse dom de nos acolher – como um abraço no escuro – na sua compreensão. Aquelas pessoas não existem e, no entanto, seduzem-me, questionam-me, magoam-me. Como todas as imagens, aquelas pessoas dependem de nós. Alguém as veste, alguém lhes escreve um Passado e uma fala, muitas vezes (demasiadas vezes) uma moral, mas no bom cinema há também alguém que tem a malícia de deixar um intervalo, uma abertura onde nos conseguimos encaixar no espaço entre as mentiras profissionais e as nossas, pouco ou nada assumidas, mas papéis mais que verdadeiros, prontos-a-vestir.
A história não interessa muito. Todos se apaixonam, adoecem e, eventualmente, morrem. Mas há personagens que são inventadas para que esse percurso seja mais admirável. As que param a cidade no flirt, as que acendem um cigarro a focar o céu, as que percebem que o infinito é uma possibilidade. E com essa gravidade, esse fardo, talvez não saibam que carregam a contemporaneidade nos olhos – sempre os olhos. Confundem o lugar onde, de facto, sentam os ossos, com a constelação onde passeiam a ansiedade de saberem que já partiram dali, sabendo que não há outra hipótese que não a de se olharem de fora para dentro, do perpétuo para o ápice, lidando com o narcisismo referente a todas as formas de tentação em serem outros, neles mesmos.
Existe um livro muito bonito chamado “O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal”, onde conversam alguns dos fazedores de cidades[1]– arquitectos, realizadores e actores. Num desses debates alguém fala da diferença da televisão e do cinema. Enquanto que a televisão vem ter connosco, somos nós que temos que ir ter com o cinema. Enquanto que a televisão projecta a luz em nós (vem de frente, ou seja, de lá para cá), a do cinema projecta-se à nossa frente vinda de trás (de cá para lá). E nós, com a luz do projector, embatemos ao mesmo tempo no quadro, fundimo-nos com os pozinhos que brilham suspensos no escuro e fazemos parte da claridade que nos é devolvida. Enquanto que a televisão é um olho que nos vê – o absoluto do panóptico – o cinema é um revés na economia da atenção, uma esperança na experiência, uma réstia de infinitos. Se a televisão nos arruma no canto do sofá, o cinema atira-nos para a rua, para o frio, para a fome, e para todas as fachadas da cidade.
E porque vivemos numa altura em que esperamos que tudo venha até nós: as imagens, a comida, as decisões, as notícias, o cinema é o convite mais audacioso. É nesse perigo relativo que arriscamos a vida em simulações explosivas; que choramos a morte de um homem vivo; que nos deixamos apaixonar por uma mulher suspeita. Tudo isto completamente cientes de que o risco é somente o vício de simular a vida; sabedores de que aquele homem viverá para sempre e a morte seremos nós; desconfiados de que se no trânsito da luz, de lá para cá, de cá para lá, não nos deixámos apaixonar, é porque o crime aconteceu aqui, e o suspeito mais forte é o Futuro.
No fim, acendem-se as luzes, reparamos na sinalética de emergência e percebemos que estivemos sempre em segurança. Encaminham-nos para o estacionamento, e, no momento da ignição, voltamos a ser coisas dúbias, numa cidade por redescobrir. Se muitos de nós nos revemos nas derivas do ego, não é porque somos todos aquela personagem perdida nos confins do amor. Não é porque partilhamos todos das mesmas desculpas para ficarmos sós. Mas sim porque nos encontrámos no pó da luz e demos as mãos, e demos os olhos, e descobrimos juntos que não somos as piores pessoas do mundo. Estamos apenas, quiçá irremediavelmente, arredados do lugar onde nos encontramos: trazemos connosco um bocado da luz do cinema e outros, seguros de si, acabarão também por sofrer a olhar para nós.
[1] Os discursos desenrolam-se sempre na dialéctica espaço-representação onde os ricos e os pobres habitam, com as suas pobrezas e riquezas, justiças e injustiças, que se revelam na mesma dose de desprezo que o país tem pelas duas disciplinas. Contudo, o que importa realçar aqui é a força como tudo se detém numa forma, como se fala do estado do reboco das paredes, da luminosidade das salas e da largura das ruas, condizentes com as personagens que nos são entregues como provas explícitas de uma concretude das desigualdades da vida, já que não nos apercebemos que somos todos tão praticamente apedeutas no que é relativo ao espaço quanto acreditamos ser mestres no que toca ao tempo – atente-se, aqui, como o cinema e a arquitectura partilham a mesma tarefa e a mesma responsabilidade.
Quanto ao facto desta pequena explanação estar em nota de rodapé prende-se com a necessidade de salvar o texto de um desvio pela artéria principal que é a questão de classe – conceito que também sofre de crises de segurança – prosseguindo, desenvolto, pelas vias secundárias de uma incursão por uma experiência estética a três: eu, a personagem que criei de mim, e a que criei para mim.