Número 35

25 de Novembro de 2023

O JOGO DAS NUVENS

Confissões de um opiómano francês

HENRIQUE LOFF SILVA

Jean Cocteau, illustration for Opium, 1930.


Jean Cocteau (1889-1963) fez-se artista nas duas primeiras décadas do século XX, entre as divindades do olimpo parisiense. Nascido no seio de uma abastada família burguesa (o pai suicida-se em 1898), foge da casa materna aos dezoito anos — anseia liberdades, novas experiências. A cidade velha de Marselha acolhe-o. Um ano depois, contudo, acaba por voltar para junto da mãe. Em 1909 surge um primeiro livro de poemas e um ano depois um segundo. A partir de então passa a ser conhecido e dá-se a conhecer. Priva com Diaghilev e Stravinsky, com Picasso, Modigliani, Apollinaire, Gide, Proust, entre muitos outros. O seu multifacetado talento desdobra-se e o correr dos anos não o esgota: na poesia, no romance, no teatro; escreve para o bailado e libretos de peças musicais; desenha continuamente; dedica-se ainda ao cinema como realizador, argumentista e actor. As suas visões, a sua originalidade, enriquecem as artes. Não admira que em 1955 pertença à Academia Francesa. Mas numa vida assim repleta pairam negras e fatídicas sombras. Foi o ópio uma delas, talvez a mais complexa e sedutora e, por isso, a mais fascinante e perigosa.

Este desenho, entre muitos, consta do livro Opium — Journal d’une désintoxication, publicado em 1930. No decorrer de um período de internamento de seis meses, durante a segunda tentativa de cura, Cocteau mantém a extraordinária capacidade para escrever não só sobre o ópio, mas sobre poesia, sobre a criação e a arte. Escreve e desenha, duas actividades que são para ele uma mesma actividade criativa. Aponta ideias, memórias e opiniões literárias (notas sobre Proust e de grande admiração por Raymond Roussel). Mas neste belíssimo livro o ópio jamais é esquecido. Insinua-se a irresistível «serpente negra» ao virar de cada página.

Como traçar a história dessa tendência de termos desde sempre procurado, nas mais diversas substâncias, não o tratamento para as doenças óbvias do corpo, mas toda a sorte de remédios — defesas, consolos, delírios, ousadias, prazeres — para algo impalpável e que na maioria vezes não sabemos explicar? Que medos ou angústias nos perturbam? Que conflitos nos agitam? Que desejos nos consomem? Pura retórica, decerto. Na arte e com os artistas, no entanto, este género de questões ramifica-se, adquire tonalidades inesperadas.

O ópio merece o nosso interesse. Um estimulante como a cocaína é uma grosseria, um exercício de vaidade; um alucinogénio, um jogo infantil. O ópio, pelo contrário, parece ser mais subtil, mais incerto, mais insidioso. Chega à Europa durante a Idade Média, trazido pelo comércio árabe. No século XIX, na forma de láudano, é um produto doméstico, um medicamento vulgar para as dores e para as aflições da alma. Muitos escritores encontram no ópio conforto para as suas penas. São famosas as dependências de De Quincey e de Coleridge. Mas o ópio não proporciona somente um alívio. Tece novos mundos, simulacros, sonhos dentro de sonhos; durante a abstinência, atrozes pesadelos. Na poesia de Coleridge, por exemplo, muitos reconhecem a influência do ópio. O mesmo parece acontecer em certos poemas de Keats. Shelley, Byron, Walter Scott, Novalis, Schiller, não desconheciam os seus encantos, nem a sua perversidade. Terá o ópio inspirado visões ou oferecido imagens aos poetas? Não se pode negar, de qualquer modo, a estreita familiaridade entre muitas figuras do romantismo e o ópio. A viragem do século não atenuou esta ligação entre «a mãe de todas as drogas» e as artes. Reuniam-se em Paris, no Bateau-Lavoir, os artistas das vanguardas num dos seus rituais predilectos: «la nuit d’opium». Picasso dizia que o odor do ópio é o mais inteligente de todos os odores.

Voltemos a Cocteau. O seu testemunho, tal como o de De Quincey, ao referir-se às torturas da abstinência, não esconde os prazeres da intoxicação. São-nos reveladas as suas delicadezas e as suas nuances. A honestidade desta espécie de diário, a escrita directa, não filtrada, cujo sentido, todavia, por vezes nos escapa, a sua qualidade literária única, tornam esta obra fascinante. Sob o efeito do ópio, escreve Cocteau, somos o «lugar próprio dos fenómenos que a arte nos envia do exterior». Acontece ao fumador ser uma «obra-prima que não se discute, obra-prima perfeita, porque fugitiva, sem forma e sem juízos»; o seu espírito «agita-se imóvel, como seda matizada». Ou ainda: «O corpo pensa, o corpo sonha, o corpo faz-se em flocos, o corpo voa. […] O ópio solta o espírito; jamais o torna espiritual; desdobra-o; não o aguça em ponta». O ópio devolve ao poeta o «poder feérico da infância», o condão que lhe permite transformar-se no que a imaginação reclama. É ao ópio que deve as suas horas perfeitas.

Talvez seja a aterradora consciência da voragem do tempo, da absurda velocidade do tempo que atormenta Cocteau. Reconhece que lhe falta um «dispositivo de fixação», o dispositivo sem o qual «a vida perfeita e continuamente consciente da sua própria velocidade se torna intolerável». Mais adiante escreve o seguinte: «Tudo o que fazemos na vida, mesmo o amor, fazemo-lo no comboio expresso que corre em direcção à morte. Fumar ópio é deixar este comboio em andamento; é ocuparmo-nos com outra coisa em vez da vida e da morte.» Ora foi o ópio que lhe trouxe essa espécie de suspensão temporal, essa perspectiva de fixação, essa possibilidade de poder «reunir o passado e o futuro e de formar com eles um todo actual». O ópio concede um apaziguamento e um conforto absolutos. Aproxima-nos dos sonhos das plantas, desse mundo de demorada paciência, de lenta circulação de seivas. O fumador entrega-se a um transe que transforma o ritmo das coisas, é arrastado pelos vagares do ópio, por um género único de lentidão que é a figura mais sedutora da velocidade.

Deixemo-nos assim corromper, se não pelo ópio real, ao menos pela fina mistura alcalóide — literária, gráfica — que Jean Cocteau teve a gentileza de preparar.