(Onde Madalena surpreende os ouvintes com o conhecimento do passado do Dr. Pichón Rivière e quase faz um dueto em torno da evocação de Alejandra Pizarnik)
(Ouve-se Piazzolla durante algum tempo. Depois, Madalena Zuarte lê, primeiro em castelhano e depois em português, o poema La Celeste Silenciosa al Borde del Pantano)
La Celeste Silenciosa al Borde del Pantano
A Enrique Pichon Rivière
Cerraron el rostro que fue idéntico al más alto sueño
de la augusta infancia y pájaros temerosos
en despliegue rapidísimo de plumas negras
hicieron el paisaje del perfecto terror.
Soy tu silencio, tu tragedia, tu veladora. Puesto que sólo soy noche,
puesto que toda noche de mi vida es tuya.
Pizarnik, Alejandra.
Poesía completa (p. 326). Penguin Random House Grupo Editorial España.
A Celeste Silenciosa na Margem do Pântano
Fecharam o rosto que foi idêntico ao mais alto sonho
da augusta infância e pássaros temerosos
em exibição rapidíssima de penas negras
fizeram a paisagem do perfeito terror.
Sou o teu silêncio, a tua tragédia, a tua veladora. Uma vez que sou apenas noite,
uma vez que toda a noite da minha vida é tua.
(Ainda Piazzola. Depois Madalena)
— Boa noite, dr. Pichón. Cá estamos para mais um programa. Este, como já adivinhou, será sobre a sua relação com Alejandra Pizarnik.
— Já adivinhei. (não parece particularmente entusiasmado)
— Apreciou a tradução? (a medo. Percebe-se que é uma tradução própria)
— Não prestei particular atenção, desculpe. É sempre muito difícil traduzir. E ainda mais difícil traduzir poesia.
— Deixe-me fazer uma breve introdução para os nossos ouvintes. (rapidamente, como se lesse e talvez lendo) — Alejandra Pizarnik é uma das grandes vozes da poesia da segunda metade do século XX. Filha de judeus fugidos à perseguição nazi, Alejandra nasceu Flora e foi Buma ou Blímula, um carinhoso nome yiddish. Estudou em Buenos Aires e viveu quatro anos em Paris, onde conheceu Octavio Paz, Julio Cortázar, Italo Calvino. Teve, como se costuma dizer, uma curta vida atribulada. Morreu aos 36 anos, deixando uma obra inconfundível. A publicação recente dos seus Diarios e das Novas Cartas, bem como a reedição da Poesia Completa pela Lumen e pela Random House, mantiveram-na presente junto de um grupo numeroso de leitores. Entre nós, em plena pandemia, a coleção da Tinta da China editou uma escolha muito significativa de poemas.
— Escolha de Anna Becciú, a sua controversa editora. E atenção, não é uma edição bilingue. (Pichón, interrompendo)
— Não é bilingue, dizem, por um problema de direitos autorais… Mas continuando… Alejandra Pizarnik teve um fim trágico, embora não totalmente inesperado. Num dia de Setembro, tento tido alta do Hospital Psiquiátrico…
— Do Hospital Siquiátrico Pirovano. Não teve alta. Teve uma autorização de fim-de-semana.
— Tal e qual… Ingeriu 50 cápsulas de Seconal sódico e foi encontrada num quarto da Calle Montevideo de Buenos Aires, departamento C, sétimo andar.
— Sim. Já tinha acontecido antes, por mais de uma vez. Mas nesse dia não chegaram a tempo. Era um quarto cheio de bonecas estropiadas e maquilhadas
— “Las muñecas desventradas por mis antiguas manos de muñeca, la desilusión al encontrar pura estopa…”
(Pichón continua como se fossem um dueto de récita) —… de lápis de cor colecionados de forma obsessiva, de poemas e outros escritos. Num quadro, ela tinha escrito:
“dediqué mi vida a la poesía y ahora descubro que la poesía no le importa a nadie”.
— Ninguém se interessa pela poesia, não é verdade, dr. Pichón? (Madalena quebrando o feitiço que parecia ter-se estabelecido. Como quem toca a sineta que leva de volta à realidade) —Mas devemos atribuir assim tanta importância à poesia? O senhor, que foi médico da Pizarnik, acredita no poder salvífico da poesia? Pode a poesia constituir uma razão de vida? Ou um instrumento terapêutico?
— Que perguntas, Madalena? Espera demasiado deste seu convidado. Para quem começou a falar de andarilhos e berços…
— A questão, doutor, é que o senhor era médico da Pizarnik. É a esse título que é, hoje, conhecido. O seu interesse pela amamentação e pelo sling são mais recentes e, deixe-me dizer, surpreendentes.
— São mais antigos do que imagina, Madalena, pode crer.
— Estou a ser injusta. Mas a minha pergunta é justa. O senhor foi fundador da Psiquiatria argentina e um dos mais notáveis psicanalistas da América do Sul. Esteve em França, com Lacan. Escreveu e inspirou psicoterapias que ainda hoje são matéria de teses académicas.
— Desconheço, francamente. Desde 1977 que deixei de me interessar pela Universidade.
— Eu sei. (com alguma ternura) — Nós estamos muito felizes por tê-lo connosco, aqui, neste programa. Mas não podemos desperdiçar mais esta oportunidade de juntar o seu nome ao de uma mulher que também o deve ter marcado. O poema que li no início é-lhe dedicado. Deixe-me insistir na pergunta: Face a uma situação limite de crise, a poesia pode ser uma alternativa à loucura? Não é essa uma tese sua? Não foi assim que escreveu, um dia?
— Madalena, eu julgo ter dito que a criação e a loucura eram duas formas de enfrentar o sofrimento psíquico. Na criação, o sujeito pode mobilizar a realidade interna e externa. Na loucura não existe essa capacidade. Porém, os mecanismos da loucura surgem como uma tentativa de controle. É possível que o sujeito, através da loucura, se livre relativamente do sofrimento. “O criador, por seu lado, salda o sofrimento com a obra”.
— Pode dizer-se que foi quando desistiu da poesia que Alejandra enlouqueceu?
— A poesia não interessa a ninguém. Foi o que ela escreveu. Mas a realidade desmentiu-a. A sua poesia difícil e sem fôlego encanta ainda muitas pessoas sensíveis da sua geração, Madalena. O interesse pela sua obra intensifica-se. A conselho de Cortázar, diz-se, a Universidade de Princeton detém agora o seu espólio literário. E a sua biógrafa, Cristina Piña, anuncia o lançamento de uma reedição do livro Alejandra Pizarnik, o mito. O próximo ano de 2022, assinalando 50 anos da sua morte, será repleto de eventos, muitos deles surpreendentes.
— E que contrariam a nota final com que pôs termo à vida. É isso?
— Não há nada que possa contrariar o que sente um criador. (o dr. Pichón parece refletir sobre o que disse, e continua com convicção) — A criação não tem um destinatário. Basta-se a si mesma.
— “Había que escribir sin para qué, sin para quién.” (A voz de Madalena lembra a de Alejandra. Sobretudo aos ouvintes que nunca ouviram a voz de Alejandra Pizarnik)
— Alejandra teve a sensação de que a poesia, o trabalho da sua vida, não interessava a ninguém. Hoje estamos aqui, neste meio de comunicação antiquado que é a rádio, a falar para um reduzido auditório…talvez para ninguém, e… (o dr. Pichón para, como se tivesse medo de concluir)
— E não tomamos 50 comprimidos de Seconal sódico, não é?
— Não tomamos, seguramente. Nem sei como prescrever. O Seconal, um barbitúrico de curta ação, teve a sua época e o seu uso recreativo, dos anos 60 até à chegada triunfal das benzodiazepinas. Está indissoluvelmente ligado a Marilyn Monroe que morreu em 5 de Agosto de 1962. A Judy Garland, a Pier Angeli, a Edie Sedgwick, essa rapariga fascinante da trupe de Andy Wharol.
— E estava à disposição de uma mulher perturbada que tinha licença de fim-de-semana de um internamento psiquiátrico e que se dizia “a fonte da discórdia, a dona da dissonância” (Madalena, com um leve tom acusatório). Mas a ligação da Pizarnik à psiquiatria e à psicanálise vem de trás. O primeiro médico dela foi Ostrov, que a conheceu em 1956 e escreveu “a minha primeira impressão quando a vi, foi a de estar frente a uma adolescente entre angélica e excêntrica”.
— Léon Ostrov, um excelente psicanalista. Mas a análise foi interrompida pela ida de Alejandra para Paris. Ele disse, uma vez: “No estoy seguro de haberla siempre psicoanalizado; sé que siempre Alejandra me poetizaba a mí.”
— Quer dizer que essa mulher que foi descrita, ou se via a si mesma como pequenita, gorducha, com acne, gaga, era, na verdade, terrivelmente influente?
— Como o foram Rimbaud ou Lautréamont, os dois poetas malditos que ela e Cortázar aparentemente perseguiram. (o dr. Pichón apercebe-se, a contragosto, de que está a concordar excessivamente com Madalena) — Mas é verdade o que diz. Ela influenciava através da capacidade que têm alguns criadores de excitar a criatividade dos que os leem. O que Ostrov chamou “poetisar”. Através da linguagem dar significado à realidade, transformar a realidade com a linguagem, ela própria submetida a contorções, distorções, confrontos, inflexões.
— Há momentos em que ela acredita que o mundo se constrói ou reconstrói com a sua nomeação. E reage contra a metáfora: (declama)
Era preciso decir acerca del agua o simplemente apenas nombrarla.
— Sim, é isso. Ela morre quando sente que as suas palavras não criam uma nova realidade. Os versos em que declara que a poesia não interessa a ninguém são contemporâneos destes:
Pero el silencio es cierto. Por eso escribo. Estoy sola y escribo. No, no estoy sola. Hay alguien aquí que tiembla.
Madalena repete os versos em português, numa tradução livre e espontânea, dedicada ao ouvinte desconhecido que ignora castelhano, enquanto se recomeça a ouvir a música de Astor Piazolla escolhida pelo editor do programa.
Madalena Zuarte utilizou textos provenientes da seguinte bibliografia:
Alejandra Pizarnik, Diarios, Lumen
Alejandra Pizarnik, Nueva Correspondencia (1955-1972), Lumen
Cristina Piña, Biografia , 2008, ed. Corregidor
Cristina Piña anunciou, na editora Lumen, a edição de uma Nova Biografia, em Janeiro de 2022: Alejandra Pizarnik. Biografía de un mito, de Cristina Piña y Patricia Venti.
Entretanto, Piña fez cursos em Buenos Aires, no Melba e deu entrevistas
https://elpais.com/cultura/2021-04-29/alejandra-pizarnik-el-mito-vuelve.html
O blog de Jacinta Escudos, Jacintario, publicou um excelente texto em 2008 intitulado Hermosa como el suicídio, um verso de Pizarnik
http://www.filmica.com/jacintaescudos/archivos/006922.html
Alejandra Pizarnik, Antologia Poética, Tinta da China
selecção e prefácio de Ana Becciú e Patricio Ferrari, tradução de Fernando Pinto do Amaral
Ana Becciú, editora de Pizarnik é muito atacada por Cristina Piña pela forma como gere a edição do material deixado pela escritora. O conjunto desse material pode felizmente ser visitado na Universidade de Princeton.
Ver, a propósito o artigo: Cristina Piña, Manipulação, censura e imagen de autor en la nueva edición de los Diarios de Alejandra Pizarnik, Universidad de Mar del Plata, doi: https://doi.org/10.15174/rv.v0i20.315
O Dr. Pichón R. citou extratos da sua longa bibliografia científica sobre Terapia grupal, Arte e Loucura, Psicanálise. Ver Enrique Pichón Rivière.
Ouviu-se Adios Nonino de Astor Piazzolla, interpretado por “Astor Piazzola com la Sinfónica “Cologne Radio Orchestra” de Alemania”, escolha do editor.