Número 18

22 de Janeiro de 2022

CORPO, BELEZA E SAÚDE

Criaturas da Luz

Morticia

“A natureza é horrível”.

Eduardo Basto

Há dias vesti-me de noite para descansar os sentidos. Percebo perfeitamente as criaturas que usam os olhos para fugir da luz. Sinto muita afinidade com elas, entre as quais as planárias. Trata-se de platelmintas de vida livre, vermes planos cujas ilustrações nos livros de biologia se assemelham a pensos higiénicos, para os quais dá vontade de menstruar.

A sua liberdade é marcada em oposição aos restantes seres do filo com modo de vida parasita. As nossas planárias não chucham intestinos alheios. Elas têm a boca na barriga (baixo ventre, vá, aqui temos de ser um pouco imaginativos porque são seres de simetria bilateral, estilo linguado, mas sem espinhas nem nada), e da boca a comida vai para a faringe, e de lá para os intestinos, e de lá para… para… é difícil explicar porque as coisas difundem-se. O sistema digestivo é duma abertura só (a boca). Termina assim numa fossa rota e têm umas células-chama que põem o que não querem lá fora.

Como não têm dentes, sugam a comida (animaizinhos e detritos pequeninos) depois de a digerirem externamente.

A sua vida livre tem diversos privilégios. No caso de fome, conseguem literalmente comer-se a si mesmas, começando pelas reservas alimentares e terminando pelos testículos, órgãos de cópula e ovários[1] (isto no caso das espécies hermafroditas, pois há espécies que são puramente assexuais). Conseguem sobreviver a esta proeza porque têm uma capacidade absolutamente notável de regeneração.

Desde cedo que esta capacidade fascinou os cientistas. Em 1814, Sir John Graham Dalyell, naturalista escocês que ficou coxo para a vida depois de ter caído em criança duma mesa, declarou-as “imortais sob o gume de uma faca”. Começaram os estudos rigorosos. Se cortarmos uma planaria até um duzentos e setenta e nove avos, cada um dos pedaços regenera uma planária nova[2]. E fica ainda mais divertido. Se cortarem a “cabeça” duma planária a meio, ela fica com duas cabeças[3]. E por aí fora. As espécies assexuais de planárias incorporaram este estilo de vida e largam “a cauda” para se reproduzirem (auto-clonarem).

Desconheço a parentalidade das planárias e a sua sociabilidade, penso que os cientistas ainda não estudaram este aspeto porque andam demasiado divertidos a cortá-las em pedacinhos. Mas um deles, James V. McConnell, foi particularmente criativo a combinar estes dois desafios. Triturou planárias treinadas (deu-lhes choques quando viam luz) e deu-as a comer a outras planárias, que se comportavam como se tivessem sido chocadas. A investigação deu origem a um artigo, memory transfer through cannibalism in planarians (transferência de memória através do canibalismo em planárias), publicado no Journal of Neuropsychiatry, uma revista de renome, ao contrário do Journal of Biological Psychology, da qual o autor era simultaneamente o revisor. A par desta revista, McConnell publicava também o Worm Runner’s Digest, composto por artigos satíricos, para fúria dos leitores que não conseguiam distingui-los dos artigos científicos. Para resolver este problema, imprimiu os artigos satíricos de cabeça para baixo, para fúria dos bibliotecários.

Décadas depois, parece comprovado que as planárias não evitaram os choques por terem comido os cadáveres das suas companheiras. Deslizaram apenas por trilhos de mucos e outros sinais deixados pelas anteriores no vidro (aparentemente, McConnell não era muito bom a lavar a louça no laboratório)[4].

Apesar destas curiosidades, o principal interesse dos seres humanos nas planárias prende-se com a imortalidade. Com a sua aparente capacidade de regeneração infinita, tornaram-se numa das promessas do que podemos aprender com a natureza[5]. Quem sabe, se uma vez aprendendo com elas a arte da imortalidade, conseguimos aprender também as outras proezas.


[1] Cristina González-Estévez (2009) Autophagy meets planarians, Autophagy, 5:3, 290-297.

[2] Handberg-Thorsager M, Fernandez E, Salo E (2008). “Stem cells and regeneration in planarians”. Frontiers in Bioscience. 13 (13): 6374–94.

[3] https://www.newscientist.com/gallery/regeneration/

[4] https://nautil.us/blog/decapitation-but-not-cannibalism-might-transmit-memories

[5] https://www.theguardian.com/science/blog/2012/feb/29/live-forever-immortal-worms?fbclid=IwAR3TjqWc9xTbLsFTB7xcCAy1moSWjzAcjXtq5-rCiQ1zbHgU41dcFu4Ormk