“E ao fim do meu dia
a matéria de que se faz a minha vida
de novo abandonada
de novo de novo abandonada
pergunta-me silenciosa
se ao apagar da luz
a vida terá princípio.”[1]
Não há nesta mulher um sinal de vaidade: o cabelo é curto, as mãos calejadas, as primeiras rugas a sulcarem-lhe o rosto. Neste dia celebra 58 anos e quem passa pela sua loja, no Mercado das Almas de Freire, não lhe adivinha a alegria (tão contida) de celebrar este dia.
Alda Cristina Costa nasceu em Coimbra, na Sé Velha, filha de operários, uma entre cinco irmãos. Lembra-se de brincar na rua, como os outros miúdos, mas não se recorda de momentos particularmente felizes.
“Sempre ajudei os meus pais porque os ordenados eram baixos. Tínhamos que trabalhar em casa. Não tenho grande memória da minha infância, sabe? Tive que crescer por mim porque sempre vivemos com dificuldades”, conta.
O pai, que na altura trabalhava na Fábrica da Cerveja, na zona norte da cidade, consertava calçado nas horas vagas, mas quase nunca cumpria os prazos acordados com os clientes. Muitas vezes coube à pequena Cristina o papel de educadora.
“Ele recebia adiantado e depois ia para as tabernas. Quando as pessoas iam buscar os sapatos, ele nunca tinha o serviço pronto. Ora, eu chateava-me. Um dia disse-lhe: “Hás de ensinar-me a arranjar o calçado que é para eu te ajudar”. Mas ele dizia: “O teu serviço é ajudar a tua mãe nas lides da casa””.
Cristina ficava em silêncio. Queria contrariar aquele destino.
“Iremos procurar a razão da giesta
a razão do amarelo
iremos procurar a razão
iremos procurar
e os olhos tomarão todas as cores
as cores de tudo.”[2]
Num Natal, o pai ofereceu-lhe umas botas de salto alto.
“Um dia levei-as para a escola, mas estava mortinha por chegar a casa porque eu não sabia andar com aquilo. A dada altura, passei por uns degraus pequeninos, bati com o pé e parti o salto de propósito”, conta.
Quando chegou a casa, mostrou as botas estragadas ao pai e pediu-lhe que colocasse uns saltos novos. O sapateiro não esteve com meias-medidas: disse à filha que fosse comprar uns saltos com o dinheiro que tinha amealhado. Ele ensinar-lhe-ia como consertar os sapatos. O castigo valer-lhe-ia uma vida.
“Penso no que de parte pus
no que afastei de sobras, desperdícios, peles,
cordas, colas, pregos, pragas,
no dedo martelado
e sei agora
(ah, e quanto tempo passou
como a água da ponte
que vai a não sei onde!)
que o que de lado pus
era isso mesmo a ponte,
ponte para este concreto,
pobre mas definido,
sapato de quem o queira.”[3]
Terminado o 9.º ano, foi trabalhar numa loja no centro comercial Mayflower, na Praça da República, e, anos mais tarde, nas Galerias do Arnado. Mas Cristina queria mais. Sempre quis mais. Em 1986 mudou-se, por conta própria para o Mercado das Almas de Freire, em Santa Clara, onde ainda hoje mantém a oficina. É um espaço pequeno que foi recheando à medida que foi ganhando clientela: latas de tinta, uma máquina para cozer solas, outra para pregar saltos, um cavalete e um martelo, alguns pares de sapatos colocados nas prateleiras em desalinho.
Será talvez a única mulher em Coimbra a trabalhar, com mestria, neste ofício meticuloso e solitário, empregando nele gestos de todos os dias.
“Mas meia sola é milagre.
E eis o que ninguém sabe:
que neste cantinho cabe,
na penumbra da oficina,
na casca do caracol,
esta pequena aspirina
que é a largueza do sol.”[4]
Se há 10 ou 20 anos, uns sapatos ou umas botas de bom couro davam para uma vida, hoje os novos materiais tornaram as peças descartáveis. Há poucas pessoas a recorrer ao sapateiro para consertar sapatos – “mas ainda vai havendo clientes”.
Iincapaz de competir com a evolução dos tempos, há poucos anos Cristina decidiu “ampliar” a loja e começar a vender peças de vestuário e atoalhados.
O mercado é pequeno e por isso, todos se conhecem. Quem passa pela oficina de Cristina, não regateia um bom dia. Alguns conhecem-na desde menina: testemunharam o esforço, a capacidade de trabalho, atestaram o prazer da independência – mesmo quando casou com o único homem que amou, tinha ela 40 anos.
“É um companheiro”, segreda, num dos poucos momentos em que sorri. Graças ao enlevo que o amor lhe trouxe, as cores da oficina tornaram-se menos sombrias. É ali que quer passar o resto dos seus dias.
“Guardarás numa caixinha virtual
o que não fiz por ti,
a mão que não chegou à sobrancelha
que nem aflorou,
o beijo repetido nas palavras
sem que o tacto
o multiplicasse qual se desejava.
Nessa caixa de nada não tardará depois
a não estares só tu,
a não estar só eu,
a estarmos só os dois”.[5]
[1] Pedro Tamen, “32”, O livro do sapateiro. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010
[2]) Pedro Tamen, “1”, O livro do sapateiro. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010
[3] Pedro Tamen, “12”, O livro do sapateiro. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010
[4] (Pedro Tamen, “7”, O livro do sapateiro. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010)
[5] (Pedro Tamen, “5”, O livro do sapateiro. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010)