Numa velha porta de madeira fechada, alguém gravou, com um canivete, as palavras: Sadly The Future Is No Longer What It Was. No gesto é clara a desilusão e o desânimo perante as promessas falhadas de todos os programas de emancipação que desde sempre se basearam na crença de um caminho progressivo em direção a um Futuro que salvará. Nesse Futuro, esteve em tempos inscrito o caminho da redenção, onde todos os crimes cometidos em nome do progresso seriam justificáveis e redimidos… mas não mais. Esse Futuro não chegou, a pesada porta de madeira não se abriu e, na verdade, hipótese de que tal possa ainda vir a acontecer, é cada vez mais remota.
Com uma estética menos negra e depressiva do que a abordagem de Leyland Kirby[1], e um alter ego arrancado à literatura de Borges, a música de Manuel Bogalheiro, que assina como Mr. Herbert Quain, servirá de exemplo para refletirmos em torno das questões da nostalgia e da melancolia.
Logo no primeiro EP que lhe conhecemos, “Incursions In The Portuguese Mood”, incorria-se numa espécie de arqueologia do ser Português, através de dois edits de temas cantados por Simone de Oliveira e Madalena Iglésias: “Pingos de Chuva” e “Degrau em Degrau”. Logo na abertura de “Pingos de Chuva”, escutamos um excerto do poema de Ruy Belo “A Mão No Arado”: “Feliz aquele que administra sabiamente a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias.”. A intervenção de Mr. Herbert Quain é delicada, de tal forma que, caso não se conheça o original, será difícil distinguir entre as novas camadas sonoras e as originais. Uma bateria orgânica, samplada e sequenciada digitalmente, e uma linha de baixo, são adicionados à composição original que é trabalhada com reverbs e delays de forma a ganhar caraterísticas espectrais. Numa entrevista à Revista Umbigo, Manuel Bogalheiro confessa que essa confluência de tempos lhe interessa:
“(…) admito que gosto dessa ideia do tempo de uma forma misturada, passado, presente e futuro. A ideia de haver quase um anacronismo permanente”. (Penteado, 2013)
Essa invocação de vários tempos é evidente, se bem que o fascínio de Mr. Herbert Quain parece pairar mais sobre uma eventual reflexão em torno da possibilidade do novo do que sobre a nostalgia de um passado que não viveu. Atente-se no pequeno pormenor de um ruído de estática retirado a um velho rádio que antecede o regresso ao tema original depois de um solo jazzy de um órgão que faz lembrar um Hammond. À primeira vista este detalhe pode parecer kitsch no entanto ele parece servir o propósito de nos trazer de volta ao presente. Se até aqui estávamos embebidos no anacronismo musical que as suas diferentes camadas sonoras invocam, este pequeno ruído funciona como um trigger que nos relembra que parte daquilo que escutamos é, de facto, uma gravação. Não se trata de aqui de fazer um tema que soe a retro, ou algo feito num tempo que não o presente, mas antes de invocar diversas temporalidades numa assemblage que usa o tempo como motor da criação, sempre com a plena consciência das diferentes materialidades inerentes aos sistemas de arquivamento e de reprodução. O tema fecha como começou, com um trecho do mesmo poema de Ruy Belo invocando esse anacronismo onde o próprio tema se move: “e atrás a vida, sem nenhuma infância, revendo tudo isto, algum tempo depois”. A pergunta que ecoa nas nossas cabeças é sempre a mesma: Estaremos nós condenados à rememoração?
A receita para o segundo tema “Degrau a Degrau” é em tudo semelhante ao primeiro mas acrescenta-lhe as marcas daquela que viria a ser (também) uma das suas assinaturas sónicas: o crackle; esse ruído de superfície que é inerente aos formatos físicos. Nos dois álbuns seguintes How I Learned To Stop Worrying And Start Loving The Waiting (2012) e Forgetting Is A Liability (2014) sente-se um amadurecimento na música de Mr. Herbert Quain que na altura dizia depender menos “de âncoras como ter uma voz ao longo de toda a música”(Teixeira, 2014). Em temas como Foolish Attemps, os vocais são cortados e muito processados, às vezes mais compreensíveis, outras menos, fazendo com que essas referências ao passado passem a ser menos explícitas e mais texturais: “A ideia do sampling e da referência e do tributo está lá e é uma parte importante do processo, mas quero que a música consiga viver mais apenas do que eu crio”(Penteado, 2013)
A sua música é feita de samples e excertos do passado numa relação estreita com a memória arquivada. São frases soltas de filmes, diálogos, extratos de livros, vozes Gospel e Soul, solos de saxofone ou de piano, e toda uma outra multiplicidade de sons e temporalidades que coabitam no imaginário de Mr. Herbert Quain. No seu conjunto, elas são capazes de invocar imagens de hipotéticas despedidas, reencontros, de confissões ou de desabafos. Em Forgetting is a Liabillity destaca-se o tema central Now. Depois de um vocal high pitched repetir “now, now, now…” uma voz masculina implora “come back, please come back”, à qual uma voz feminina responde, “I’m not coming back.” O mood é envolvente e melancólico, mas se olharmos para além da leitura óbvia do rompimento de uma relação amorosa, não será aquilo que a voz masculina suplica que regresse, a própria possibilidade do Agora? Envolvidos na reciclagem de elementos do passado teremos nós esquecido de como viver o presente? Perdidos nessa densa floresta da retromania, que impede que o tempo presente seja lido como coisa uma, agrilhoando-o no passado através da marketização das sequelas e remakes, teremos nós afastado de tal forma o Agora, que a sua possibilidade jamais voltará? No final do tema a voz feminina (o Agora?) regressa para confessar que “the only thing more impossible than staying, was leaving”, re-afirmando inevitabilidade do presente.
No entanto o perigo de cedermos à doce nostalgia não é o maior dos riscos que corremos hoje em dia. Num texto do seu livro Ghosts Of My Life, e a propósito do álbum de The Caretaker que antecede “Sadly…”, Mark Fisher questiona-se sobre a eventualidade da condição da amnésia anterógrada refletir a condição pós-moderna por excelência: “The present – broken, desolated is constantly erasing itself, leaving few traces. Things catch your attention for a while but you do not remember them for very long. But old memories persist, intact… Constantly commemorated…. I love 1923…” (Fisher, 2014). O problema aqui é precisamente essa impossibilidade do presente. Um presente que existe mas que não se materializa; não perdura como o passado que lhe resiste e o captura devido à sua condição de assombração. O passado não pode ser esquecido mas o presente não pode ser lembrado… Existirá algo mais para além dos fantasmas que rememoramos?
É precisamente essa ideia de música assombrada[2], que é marcada não só pela nostalgia, mas também por uma clara melancolia, que se encontra presente na música de Mr. Herbert Quain. Nela há a clara noção de que tanto a esperança futurística da eletrónica do pós guerra (preconizada na imagem dos Krafwerk), como a euforia revolucionária da música de dança dos anos 90 (usando como exemplo o movimento do Jungle inglês) se evaporou. Assim, estando o Futuro comprometido, uma das opções à nossas disposição para a criação do novo reside na revisitação do passado e na sua instrumentalização. Mas desengane-se quem pensa que estamos perante um tipo de música derrotista e reacionária, que desistiu de desejar o Futuro e que se entregou à eterna rememoração. Fazer música, enquanto processo produtivo, implica necessariamente que se acredite que o amanhã é possível e virá. Caso contrário qual o sentido de procurar algo novo? Segundo Freud, tanto o luto como a melancolia falam de perda, mas enquanto que o luto fala do lento e penoso processo de abandono do desejo pelo objeto perdido, na melancolia esse desejo permanece ancorado àquilo que desaparece. Nesse sentido a assombração constitui-se como um luto falhado. O assombrado é alguém que se recusa a abrir mão do fantasma, mantendo viva a memória da sua potencialidade. Ora é precisamente essa recusa que dá á melancolia uma dimensão política. Recusando-se a ceder às formas dominantes impostas pelos diferentes sistemas de controlo, ela ilustra o falhanço em nos acomodarmos aos horizontes fechados de um realismo capitalista que insiste na ideia que que não existe qualquer alternativa. É nesse desajuste com a realidade, nesse sentimento de desilusão perante o atual estado das coisas e na recusa em aceitá-lo, que, através da invocação de um passado onde a alternativa era ainda possível, reside a força que ajuda a manter viva a ideia de que um mundo radicalmente diferente do atual possa vir a existir.
Fisher, M. (2014). Sleevenotes for The Caretaker’s “Theoretically Pure Anterograde Amnesia.” In Ghosts of My Life – Writtings On Depression, Hauntology and Lost Futures. Zero Books.
Penteado, F. (2013). À ESPERA DE MR. HERBERT QUAIN. Umbigo. http://umbigomagazine.com/um/2013-11-19/a-espera-de-mr-herbert-quain.html
Teixeira, S. (2014). Entrevista a Mr. Herbert Quain. BranMorrighan. https://branmorrighan.com/2014/03/entrevista-mr-herbert-quain-manuel.html
[1] Alter-ego de James Kirby, artista britânico que também é o autor de projectos como The Caretaker, The Stranger, Billy Ray Cyrix ou V/Vm, e que editou em 2009 o álbum “Sadly The Future Is No Longer What It Was” pela sua editora “History Always Favours The Winners.
[2] De hauntology, como proposto por Derrida.