Número 42

10 de Agosto de 2024

IDEIAS

Dar a cara

RITA ASSUNÇÃO SERRA

“Vinte e cinco raparigas de Hiroshima chegaram a Nova Iorque transportadas pelo exército dos Estados Unidos. Estão a ser tratadas cirurgicamente no Hospital do Monte Sinai absolutamente sem custos. Esta noite, queremos que conheçam duas destas raparigas. Ambas viveram o terror do bombardeamento atómico. Para evitar causar-lhes qualquer embaraço, não vamos mostrar as suas caras”. Estas palavras foram proferidas a 11 de Maio de 1955 por Ralph Edwards, o criador, produtor e apresentador do programa televisivo This is your life, no episódio dedicado à vida de Kiyoshi Tanimoto. Neste programa de telerrealidade, as pessoas eram surpreendidas em frente a uma audiência por colegas, amigos e familiares que foram importantes em momentos críticos da sua vida. Kiyoshi Tanimoto pensa que vai ao programa angariar fundos para as Hiroshima Maidens – raparigas desfiguradas pelo rapazinho, nome de código da bomba atómica largada sobre a cidade dez anos antes. Durante os trinta minutos do episódio, revê com carinho a mulher americana a quem chama mãe (que o acolheu quando renunciou ao budismo para se tornar um pastor cristão), um amigo que estudou com ele teologia nos Estados Unidos, e a própria esposa e filhos vindos do Japão. Encontra-se pela primeira vez com o co-piloto do bombardeiro Enola Gay que lançou a bomba, que lhe estende a mão em amizade, visivelmente emocionado enquanto diz “meu Deus, o que fizemos?”.1  

Na época o episódio foi controverso, e muitos americanos consideraram que o co-piloto, Robert Lewis, fez uma pobre figura de si próprio ao duvidar, mesmo por uns segundos, da moralidade dos Estados Unidos lançarem a bomba. Possivelmente as dúvidas de Lewis duraram mais que um momento. Quatro anos antes do episódio tinha-se encontrado com Hubert Schiffer, padre jesuíta que estava em Hiroshima quando a bomba foi lançada. O encontro teve lugar num quarto de hotel em Nova Iorque, de acordo com Gretta Palmer do jornal The American Legion.2 Ambos recordam o sabor ímpar que sentiram na boca quando a bomba foi lançada, o clarão mais intenso que o sol e o silêncio da explosão nos momentos seguintes. Lewis diz que nem que viva cem anos conseguirá esquecer aquele momento. Preocupa-se constantemente com a saúde de Schiffer, que ainda tem lascas de vidro nas suas costas, mas este diz-lhe para não se preocupar com isso. As notícias que Schiffer lhe dá são animadoras: a morte das pessoas foi “limpa”, as pessoas não sofreram com a radioatividade, ficaram carecas durante uns anos mas agora o cabelo está restaurado e acima de tudo, espiritualmente estão muito melhores do que estavam. Conta-lhe que alguns japoneses designaram a bomba como “o vento de Deus”, e de bom grado aceitaram o sacrifício que desempenharam em nome da paz mundial, sentindo-se honrados. Lewis parece sentir-se envergonhado ao dizer que da parte deles o sacrifício foi pequeno, e nem sequer ficaram com fadiga de combate. Mas Schiffer continua entusiasta: convida Lewis para a inauguração de um memorial da paz a ser construído no lugar onde a bomba explodiu, repleto de cruzes católicas a convite dos próprios japoneses que voluntariamente abandonam a religião budista para se converterem ao catolicismo. Afirma que são estes os efeitos fantásticos da bomba que ninguém conseguiu prever, nem os generais, nem os cientistas e muito menos os pilotos que a lançaram. A peça jornalística termina com a fantasia de Lewis sobrevoar o memorial da paz no seu bombardeiro, atirando doces em vez de bombas para as crianças, para pôr fim aos seus pesadelos e dar a Hiroshima um final feliz.

Na realidade, a bomba explodiu imediatamente acima de uma clínica cirúrgica, e o sonho de Hubert Schiffer nunca chegou a ser construído. No episódio de Ralph Edwards, Kiyoshi Tanimoto descreve que os efeitos da bomba foram além da cosmética, e menciona que as pessoas pareciam fantasmas, com a pele e os olhos a caírem do corpo. Muitas das raparigas a quem Tanimoto procura dar a cara receberam cirurgias em Tóquio, mas os Estados Unidos eram o país mais avançado nas cirurgias plásticas. Num golpe político, convenceram os cirurgiões a aceitar reconstruir as faces das japonesas para mostrar a superioridade tecnológica e moral americana, inocentando-se da guerra. O episódio televisivo foi patrocinado pela Hazel Bishop, empresa de cosméticos da mulher empreendedora que criou na sua cozinha um novo batom duradouro enquanto trabalhava na otimização de combustíveis para bombardeiros. Os espectadores são constantemente bombardeados com o seu verniz, associando as expectativas das Hiroshima maidens à beleza. Não seria a única vez que a associação seria feita. No total, foram realizadas 138 cirurgias às 25 mulheres que viajaram para os Estados Unidos no período de 18 meses e uma delas, Tomoko Nakabayashi, morreu de paragem cardíaca surgindo nos media como vítima da “perseguição da beleza”.

Robert Lewis fez a primeira doação para a reconstrução da cara das Hiroshima Maidens, mas mesmo assim a sua consciência não foi aplacada. Duas décadas depois, torna-se escultor amador e faz em mármore italiano a peça “O vento de Deus em Hiroshima?”, na forma de um cogumelo que escorre um líquido a simbolizar “o sangue dos seres humanos que flui da bomba”. Quem nos conta o significado da obra é o seu psicoterapeuta, Glenn Van Warrebey,3 autor do livro “Olhar para cima, olhar para baixo: a psicologia dos bombistas atómicos e sobreviventes de Hiroshima”, de 1985. Warrebey atribuiu sentimentos de culpa aos tripulantes dos bombardeiros, mas cada um deles fez sentido da bomba de maneira diferente. Paul Tibbets, o piloto do Enola Gay que aos 12 anos se sentiu todo-poderoso por atirar doces de um avião numa campanha de marketing,4 aderiu fielmente à narrativa oficial que a bomba apressou o fim da guerra e salvou vidas. Depois de terem visto o que aconteceu em Hiroshima, os tripulantes do avião que acompanhou o Enola Gay na sua missão, o Great Artiste, ficaram incrédulos ao saber que uma segunda cidade iria ser apagada. “Fiquem quietos e esperem que os japoneses se rendam. Não são precisas mais missões, mais bombas, mais medo e morte, Deus, qualquer idiota vê isso”, pensou Abe Spitzer, operador de rádio que testemunharia as duas bombas. Horas antes de ser largada a segunda, a União Soviética declarou guerra ao Japão e invadiu a Manchúria num banho de sangue. Mas o copiloto Frederick Olivi do Bockscar que lançou a bomba sobre Nagasaki justificou o ato dizendo que não tinham outra escolha por causa das “capacidades de defesa fanáticas dos orientais”.

A moralidade de lançar duas bombas atómicas sobre civis é certamente questionável, mas é facilmente respaldada pelo contexto de guerra. Em 1995, Tibbets disse numa entrevista “nº1, não há moralidade na guerra, esqueçam; nº2, quando se luta uma guerra para ganhar, usam-se todos os meios à disposição”. Acrescentou ainda noutra entrevista que “seria moralmente errado ter aquela arma e não a usar e deixar mais um milhão de pessoas morrer”. Mas o que dizer das 24 bombas nucleares lançadas sobre o Atol de Bikini em tempo de paz, causando a morte de famílias que podiam ser da Vaiana da Disney? Em 1946, Ben Wyatt continuou a usar o mesmo argumento, dizendo às pessoas de Bikini que os testes nucleares eram “para o bem da humanidade e para acabar com todas as guerras”.5 Em vez disso, entre cancros, destruição ambiental e abusos flagrantes de direitos humanos, centenas de crianças nasceram sem cara e sem ossos. Chamaram-lhes bebés medusa, e só respiraram por umas horas. Depois de morrerem os seus corpos foram enterrados imediatamente e não foram mostrados às mães, porque apresentá-los seria desumano.6 

Sete décadas depois, os povos das ilhas Marshall continuam a lutar por justiça e reparação. Talvez a resposta tarde porque continuem a considerá-los tão subhumanos como em 1956 quando Merril Eisenbud, diretor da Comissão Atómica de Energia, aconselhou que regressassem ao “lugar mais contaminado do mundo” para ver os efeitos da radiação em humanos, “pois mesmo eles não sendo civilizados, são mais parecidos connosco do que os ratos”.7 O governo diz que não houve intenção de magoar ninguém e não apresentou um pedido de desculpas até hoje.

Quiçá os Estados Unidos não dêem a cara em Bikini para não perder a face. Como disseram Even LeMay e Robert McNamara sobre as bombas, “se tivéssemos perdido, seríamos julgados como criminosos de guerra”. A isenção moral dos feitos resulta do alinhamento com a vitória coletiva. Quem sabe se foi por esta razão que os participantes nos acontecimentos nunca recorreram à desculpa de “estarem só a cumprir ordens”, ao contrário dos alemães.

Podemos comprovar esta tese radical comparando o julgamento moral que recaiu sobre outros bombistas americanos que atuaram a solo. Por exemplo, Ted Kaczynski, o Unabomber, usou um argumento semelhante ao de Tibbets para se defender dos pacifistas, dizendo que não usar a violência necessária para acabar com a destruição ambiental e humana causada pela civilização tecno-industrial no presente vai causar mais mortes no futuro. O veterano da Guerra do Golfo Timothy McVeigh, bombista de Oklahoma em protesto pelos assassinatos governamentais de Ruby Ridge e massacre de Waco, disse não sentir qualquer remorso pelas mortes que causou: “pensem nas pessoas como se fossem storm troopers na Guerra das Estrelas. Podem ser individualmente inocentes, mas são culpados porque trabalham para o Império do Mal”. Condenamos Ted e Timothy por terem assumido em nome próprio atos de terror e pelo desprezo com que trataram as suas vítimas, mas inocentamos Truman que não assinou a largada das bombas e os militares que as assinaram em Tiniã, porque somos cristãos e “pai perdoai-lhes que eles não sabem o que fazem”.

A inocência dos americanos perante a destruição e sofrimento causados pela bomba é chocante, talvez porque nunca tenham visto as caras desfiguradas das Hiroshima Maidens. Mostrá-las seria mais do que um “embaraço para elas”, seria um episódio de mau gosto, feio como a obra de arte de Robert Lewis, digno do cinema mais gore. A bomba atómica foi traduzida como poder e vitória absolutos, e todos os cidadãos quiseram um pedaço disso. A metáfora da bomba foi associada a produtos como o bikini, nomeado estrategicamente após as notícias sobre os testes nucleares no atol para causar um efeito atómico no mundo da moda.8 A tradução não parece ser ato de maldade, mas de uma gigantesca irresponsabilidade. Para ser responsável é necessário respeito, nos termos que expressa Donna Haraway: respeito é respecere, olhar de volta compreendendo que o olhar do outro é condição necessária para termos cara. O complexo tecno-militar não tem cara, e quem sabe por isso precisa de herois para assumirem os feitos em seu nome.

Os hibakusha – sobreviventes da bomba atómica – continuam a procurar o encontro com alguém que seja responsável. Kiyoshi Tanimoto contou o seu testemunho a John Hersey para a peça Hiroshima, juntamente com outros sobreviventes. O artigo foi publicado no New Yorker a 31 de Agosto de 1946, e depois de o lerem, muitos cientistas choraram e sentiram vergonha de terem celebrado o lançamento da bomba. Os hibakusha constituíram um arquivo online com os testemunhos dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki, das pessoas indígenas que sobreviveram a testes nucleares e outras comunidades afetadas para tomarem ação pelo desarmamento.9 São considerados a face da compaixão, e desafiam constantemente a narrativa oficial que termina com a largada das bombas para pôr fim à guerra. A história dos hibakusha começa onde a dos vencedores acaba: encará-los não é tarefa fácil, pois têm escrito no corpo os danos causados a civis que ninguém quer recordar. Em 2008 criaram um programa educativo para a paz, e visitam escolas públicas para contar os seus testemunhos cara a cara. Em 2023 fizeram mais uma tournée nos Estados Unidos, mas os três sobreviventes octogenários de Nagasaki sentiram dificuldade em chegar aos estudantes, que mascavam chiclete, olhavam para os telemóveis ou riam-se enquanto ouviam as suas histórias. “Não estamos a ouvir os seus sentimentos verdadeiros”, disse Masao Tomonaga, hibakusha médico que dedicou a sua vida ao estudo da leucemia e à abolição de armas nucleares.10 Começaram então a desafiá-los: “foram os Estados Unidos que desenvolveram as armas nucleares, e o vosso país tem uma responsabilidade para acabar a era nuclear. Vamos ouvir o que têm para dizer”. Gradualmente os estudantes emocionaram-se ao saber pela primeira vez que os efeitos da radiação continuam. Partilharam os seus medos sobre Ucrânia e Gaza, mas questionam-se: “o que é a América sem a força militar? Se abdicássemos da guerra nuclear, não saberíamos como estar no mundo”.

A filha de Kiyoshi Tanimoto, Koko Kondo, vai fazer 80 anos no dia 20 de Novembro. Tinha 10 anos quando apareceu no episódio de This is your life com a sua família. Em criança não conseguia olhar as caras das Hiroshima maidens por estarem deformadas. Era a irmãzinha delas. Sempre que falavam da bomba, pensava que se algum dia encontrasse a pessoa que a lançou, dava-lhe um murro ou um pontapé. Mas quando viu Robert Lewis a chorar no programa, pensou “ele não é um monstro, é um ser humano”. Compreendeu então que tinha de odiar a guerra e não as pessoas. Ainda no palco, deram as mãos. Conta numa entrevista que foi um dos momentos mais importantes da sua vida.11 Soube anos mais tarde que Lewis estava num hospital mental. Aprendeu que na guerra ambos os lados sofrem. No epitáfio de Hiroshima está escrito “descansem que nunca mais vamos repetir o nosso erro”. Mas em inglês a frase foi traduzida como “descansem que nunca mais repetiremos o nosso mal”. Koko acha que “mal” é uma palavra muito forte. “Os seres humanos não são maus, o que fazem certamente sim, mas não é o que somos. Não concorda?”, pergunta ao entrevistador.


1 https://youtu.be/KPFXa2vTErc?si=Km1-AryCt69J2rtO

2 https://archive.legion.org/node/2064

3 https://conelrad.blogspot.com/2010/10/shroom-odyssey-of-robert-lewiss-atomic.html

4 https://apjjf.org/peter-j-kuznick/2642/article

5 https://thediplomat.com/2024/03/ashes-of-death-the-marshall-islands-is-still-seeking-justice-for-us-nuclear-tests/

6 https://www.wiseinternational.org/nuclear-monitor/374-375/jellyfish-babies

7 https://www.huffpost.com/entry/the-legacy-of-us-nuclear_b_586524

8 https://www.nationalww2museum.org/war/articles/evolution-of-the-bikini-1946

9 https://hibakushastories.org/

10 https://www.asahi.com/ajw/articles/15069891

11 https://www.kyotojournal.org/society/a-distant-flickering-light-the-hibakusha-peace-movement/