Mariana Barros Silvestre entrevista o dr. Pichón R. | T2 E8
Onde o dr. Pichón R. e Mariana discorrem sobre alguns percalços no desenvolvimento do descomer em louça sanitária.
— Boa tarde, Enrique. Aqui estamos para mais um programa da Rádio Osso. Desta vez, lamento dizer-lhe que não recebi nenhum eco do nosso último programa. Passei pelas livrarias e o livro da Sally Rooney vende-se bem, mas não foram capazes de me dar o perfil dos compradores, de forma a que o nosso editor pudesse fazer os necessários cruzamentos. Um jornal de referência trazia uma reportagem sobre o sexo em tempo de pandemia. Mas mais uma vez não vi nenhuma referência ao nosso programa.
— Boa tarde, Mariana. Boa tarde a todos os que nos ouvem. Sobre as reações da audiência, direi que não esperava outra coisa. Mas não iria perder muito tempo com essa preocupação. Gostava de voltar às origens deste programa e falar de um tema que talvez interesse às crianças e aos cuidadores. Um dos temas primordiais. Vou enunciá-lo de forma muito direta: (pausa, após o que se ouve a voz solene do Dr. Pichón) porque é que algumas crianças não querem usar a louça sanitária das casas?
— Enrique, tem a certeza?
— Repare que estou a pesar bem as palavras. Por consideração para consigo, Mariana, e pelo vasto auditório. Não disse as crianças. Mas algumas crianças. E não nomeei a excreção que está em causa.
— Mas vai ter de o fazer. (falsamente ameaçadora)
— Bom… Trata-se quase sempre da eliminação de produtos sólidos… do produto final da digestão. Descomer.
— Como assim! Descomer? Isso é castelhano, Enrique?
— É português, Mariana. Do Brasil, talvez. Designa o ato de devolver organicamente o que se comeu.
— Defecar? Bostar? Obrar? Despachar? Evacuar? (Mariana, exultante na sinonímia)
— Isso tudo, Mariana. (interrompendo, com pudor)
— Doutor Pichón, eu percebi que tem alguma relutância em entrar num tema tão escatológico. Mas o nosso impenetrável auditório deve perceber, pelo menos, a natureza do tema. O doutor quer falar dos motivos que levam algumas crianças a não quererem defecar na sanita? É isso?
— Isso mesmo. Se quiser formular assim a questão.
— Sem problema. Deixe-me ser muito direta e não apenas por motivos editoriais. Em Portugal, as crianças pequenas borravam-se. Durante muito tempo, borraram-se. Só recentemente é que começaram a defecar. E talvez o uso da louça sanitária que conduz os dejetos a uma canalização, seja recente, na história da infância, e isso explique a hesitação de algumas.
— Obrigado, (aliviado) avançamos então na escatologia.
— O Enrique importa-se de redefinir a questão, agora que libertámos as palavras? (a voz de Mariana soa muito calma, pedagógica)
— Vou tentar: Um número considerável de crianças, numa idade em que estas começam a controlar os esfíncteres, recusa sentar-se na sanita. Todas as variantes são possíveis. Recusa total. Aceitação da micção, mas recusa em defecar. Defecar, mas com fralda.
— Quer dizer que uma criança pode ter controle de esfíncteres e continuar a querer usar a fralda?
— Sim, claro. Pode. Pode isolar-se para o fazer. Pode dar notícia depois, ou ignorar, ou aparentar ignorar.
— Insensível ao que ocorreu?
— Sim, embora, em regra haja uma grande vigilância sobre estes acontecimentos por parte dos cuidadores.
— Por motivos óbvios e porque os infantários, em regra, só recebem crianças “limpas”.
— E as famílias tentam acelerar o desfralde. Mas deixe-me sublinhar o uso da palavra “limpo” que seguramente não fez de forma inocente. (o dr. Pichón com voz tremente de cumplicidades)
— Georges Vigarello? (Mariana, sorridente)
— Sim, é obrigatório recordá-lo.
— Não quer ser o Enrique a fazê-lo?
— Bom, Georges Vigarello é um investigador francês que escreveu uma série de livros sobre a higiene corporal e a sua história, nomeadamente na França. (o dr. Pichón está contente) — Procedeu a uma análise histórica das práticas de higiene e da sua ligação com acontecimentos sociais marcantes, como as pestes e as regras sanitárias que estas determinavam. Um dos seus livros mais divulgados chama-se, em português, O Limpo e o Sujo. É talvez a isso que se refere?
— Sim, o limpo e o sujo. Se me lembro, e digo isso porque o meu namorado me fala recorrentemente sobre isto, o conceito de limpo não esteve sempre propriamente ligado à água.
— De facto, sobretudo nas épocas de peste, a transmissão das doenças pestíferas era associada às pestilências, correntes de ar contagioso, quente, que podiam penetrar o corpo.
— Como se o corpo humano fosse poroso, e precisasse de ser protegido. (Mariana diz corpo de forma muito sensual, repara Hélio Barata, que, a pedido do editor, hoje fez uma perninha no controle técnico de som do programa.)
— Como se a pele, sobretudo a pele das crianças, fosse não apenas porosa, mas permeável.
— Interessante, a pele como cápsula imperfeita. Podemos ir mais longe, à própria ideia de cápsula. Gosto muito disto. (Mariana, divertida) — A cápsula, a membrana que protege. (Mariana faz uma pausa e prossegue com entusiasmo, mais atenta ao sorriso de Hélio Barata, na régie, do que ao dr. Pichón) — A organização dos seres vivos exigiu a criação de cápsulas, não? Quero dizer, a cápsula deve ter surgido ao longo da evolução. Cápsulas e membranas celulares. Instalando o conceito de interior e exterior. Íntimo e público. Privado e… (hesita) — Reservado e… nos baldios.
— Mas o interior não pode existir sem o exterior. (o dr. Pichón apercebe-se do entusiasmo excessivo de Mariana e volta-se, na direção do seu olhar, cruzando-se com o sorriso de Hélio Barata) — O interior tem de ter formas de comunicação e transferência com o exterior. Tem de haver portões, canais, túneis, janelas. Através dos quais a matéria circule. (consegue dizer)
— De forma mais ou menos regrada, controlada.
— A questão é que as regras não são conhecidas. E tudo se passa a nível microscópico. Pelo contrário, em determinados momentos de concentração humana surge claramente a noção de contágio fatal, de contaminação, de transmissão. Nessa altura a ideia da fragilidade da pele face à imaterialidade do ar pestilento, deve ter sido aterradora. (o dr. Pichón interroga-se sobre se estará a pensar, de facto, na Idade Média)
— Sim, não apenas o ar pestilento era temível. Igualmente a água. A água podia penetrar a pele, dissolver a cápsula, envenenar o corpo. O corpo humano, vestido com roupas que não permitissem o contacto e o aprisionamento do ar, não devia contactar com a água, senão em certas e raras condições. (disse duas vezes mais a palavra corpo, pensa Hélio Barata, na régie, e duas vezes roda distraidamente um botão)
— Particularmente o corpo das crianças. Conta-se a propósito que o delfim de Luís XIII só viu as suas pernas lavadas aos cinco anos.
— Que terror e que alívio!
— Só suportável pela encenação e pelo ritual. (o dr. Pichón prepara-se, aparentemente, para dar pormenores do ritual, mas Mariana interrompe)
— Sem abandonar esta ideia de cápsula, deixe-me colocar uma questão técnica. Devia ser problemático conciliar este corpo infantil que não pode ser molhado, com a limpeza dos excrementos.
— Sim, certamente. Mas as crianças de sociedades de recolectores têm, segundo escrevem os antropologistas, um controle de esfíncteres muito mais precoce. Um investigador perguntou uma vez a uma das mães de uma tribo do deserto do Calaari, como faziam para obter tal resultado. Surpreendida com a questão, ela riu-se e respondeu: olhando para eles.
— Temos neste momento alguns dados do problema. Vou tentar sistematizar. A noção de limpo é cultural e realiza-se de maneira diferente nas diversas épocas e sociedades. O mesmo para as práticas de higiene, incluindo a lavagem do corpo e o banho. A noção de cápsula deve ser fundamental para a consciência e está ligada à construção do eu, da individualidade. (Cor-po, a boca de Hélio arredondada)
— A uma noção de diferenciação evolutiva. A membrana isolando o núcleo carateriza os eucariotas.
— A cápsula pode ser permeável e fenestrada. Forma de proteção e de comunicação. Através da cápsula incorporamos matéria e eliminamos os resíduos do funcionamento corporal. (Como se tivesse uma ideia repentina) — Talvez devêssemos focar especialmente o tubo digestivo, Enrique?
— O tubo digestivo é exterior. O tubo digestivo é uma forma de circulação do exterior pelo organismo. Revestido de uma pele especial, as mucosas, o tubo digestivo é uma forma de lidar com o exterior. De o receber, alterar física e quimicamente, de o integrar na matéria interior, de eliminar. Um percurso habitado intensamente, colonizado ou local de passagem e de comércios vários. Mas exterior. Embora o acesso e a saída possam ser drasticamente controlados por dois esfíncteres congeniais. A boca e o ânus.
— A boca é talvez um dos pontos mais importantes do corpo, não acha. Uma espécie de entrada no corpo.
— Depende do corpo, certamente. As mulheres de Corrientes chamavam “boca do corpo” à vulva.
— Talvez venha daí esta ocultação da boca que a contemporaneidade está a operar?
— Estou completamente de acordo. Foi muito fácil, a muita gente, ocultar a boca. Os lábios revelam-nos de uma forma insuportável. Os lábios são um esfíncter prodigioso. Com essa inervação intensa que o homúnculo de Penfield exterioriza. Com a capacidade de sentir e de prender, aspirar, sugar, modular o som, segurar a saliva, regular saídas e entradas. Os lábios enchem-se e esvaziam-se de sangue, como os órgãos genitais, e por vezes ao mesmo tempo que eles. A multiplicidade de funções da boca pode ser excessiva para tanta exposição. (Pichón parece ter fixado a atenção de Mariana. Hélio Barata faz gestos, na régie. Uma mão sobre a outra. Mariana e Enrique percebem a pressão do tempo e aceleram)
— De certa forma a boca é um ânus que se especializou e complexificou.
— Pela proximidade do cérebro, sem dúvida.
— O cérebro está igualmente próximo do ânus.
— A distância faz todo o significado, para mim. Qual é a velocidade de condução do estímulo nervoso? Quanto tempo demora um impulso do cérebro à boca? E do cérebro ao ânus? Esses milissegundos não fazem a diferença? E eu acho que o Inconsciente…
— Não temos falado dele, não é Enrique?
— Não temos falado de outra coisa, Mariana.
— Pois. (riso nervoso)
— Acho que o inconsciente passa pelo Sistema Nervoso Autónomo, pelos centros nervosos da amígdala, do sistema límbico… e que estes têm uma ligação especial ao ânus, às zonas remotas do tubo digestivo.
— Como é representado o ânus no homúnculo de Penfield?
— As representações do esfíncter anal no córtex motor são estudadas com técnicas de estimulação focal magnética desde o final do século XX. E mostram que a musculatura anal está representada no córtex motor supero medial e que o córtex motor destas áreas tem fortes projeções na medula sacro caudal que inerva os músculos pélvicos.
— Estão a fazer-nos sinais da produção.
— Qualquer coisa sobre o tempo. Dizem que nos estamos a esquecer do tempo.
— Não, do público.
— Do tema. (ambos)
— O tema… (o dr. Pichón tentando concluir) é tentar explicar porque é que algumas crianças usam relutantemente a louça sanitária, o trono, para defecar, numa altura em que o desenvolvimento das suas áreas 4 de Brodmann, no córtex centro-medial de ambos os hemisférios cerebrais, iniciam, através de projeções na medula sacrocaudal, o controle da musculatura pélvica, do reto e do ânus, necessário para o ato volitivo da defecação.
— Enrique, tente simplificar um pouco mais. Tem um minuto.
— Simplificando: existe um controle reflexo, autonómico da defecação, sediado na medula sagrada e envolvendo o recto e o esfíncter anal interno. E existe, mais tardio no desenvolvimento, um controle voluntário dos músculos do solo pélvico e do esfíncter anal externo. A nível central, existem zonas corticais e do tronco cerebral que recebem informação e, de certa forma controlam o resultado final, através do reforço e inibição da atividade reflexa, mas igualmente da atividade dos músculos estriados.
— Assim simplificada, a dificuldade da tarefa parece impossível de ser superada.
— Apesar de tudo, Mariana, a esmagadora maioria das crianças resolve esta questão em pouco tempo.
https://www.gastrojournal.org/article/S0016-5085(99)70547-0/fulltext
Callaghan B , Furness J, Ruslan V. Neural pathways for colorectal control, relevance to spinal cord injury and treatment: a narrative review. Spinal Cord (2018) 56:199–205