Para Cândida Eréndira
O deserto é o lugar para onde fogem os desertores. Um ecossistema exigente, situado fora das portas das cidades, protegido, não por barreiras físicas, mas por ninguém lá querer ir, ou estar, ou permanecer. Até que, por algum azar, alguém descobre lá algo de valor, que pode ser uma pedra líquida, uma joia ou um micróbio na areia que justifica o incómodo do calor e da secura para os citadinos, revestidos com a sua tecnologia, irem lá buscar, irem lá matar e trazer em múltiplos frascos separados o que uma vez ocupou interstícios de forma tão discreta que só a obscenidade do olho que tudo vê tem a crueldade de notar.
Erradicados os picos e as sementes dos catos, o deserto está condenado a ficar cada vez mais pobre. Cada vez é menos um asilo para os desertores, ou menos confortável e, paradoxalmente, cada vez mais esplendoroso.
Dentro das cidades, os desertores estão cada vez mais à janela. Sequiosos de areia, condenados a beber água por uma necessidade do corpo, sacrificam pedaços da sua alma consolados apenas com a vista, com as mãos dentro de luvas. Água tão mal colocada, a que chove nas cidades, sempre vista como um incómodo que entope sarjetas, que, sem lugar por onde fluir, só molha e arrefece.
Que falta fazem ilhas desertas, que falta as areias oceânicas tornadas em jangadas onde ao invés do movimento perpétuo o tempo pára, e nos deleita com um espetáculo de sensações boreais. Que falta esses pontos fixos que, ao invés de terem a arrogância de levantar o mundo, permitem aos desertores tomar uma cerveja com vista para o inferno antes de fazerem qualquer coisa que não sabem bem o que é, que pode não ser nada, ou tudo. Terra de esporos e de cistos sem serem escravos do futuro nem esperarem pelo depois para definirem o antes, fazem do sono um sonho e habitam presentes impossíveis, sempre soltos para viajar num sopro para outro presente qualquer.