Número 3

1 de Maio de 2021

O DESPLANTE

Desertos

FREDERICO MARTINHO

Às vezes as cidades parecem desertos, outras vezes parecem ficções demasiado duras para serem compreendidas e ainda há aqueles momentos em que são mesmo uma lástima que custa observar. Não porque cheiram mal, seja do óleo, dos adubos ou das sarjetas, ou porque estão repletas de plástico e de trapos enegrecidos pelo que escorre das chuvas, o que chove do escarro, o excesso ou o sarro, mas porque se tornaram lugares de abandono de cães e de homens, e de casas, vazias, esperando que a inflação torne o vazio cada vez mais valioso.

As cidades quando parecem desertos são uma mentira: o deserto não é o vazio senão o do homem, não fosse ele mesmo um termo inventado para enfrentar essa lacuna que é estarmos recorrentemente rodeados do nada. No século XVII, deserto era a palavra utilizada para referir qualquer lugar desabitado fosse ele uma extensão infinita de areia, uma floresta ou uma área montanhosa, e que no vocabulário religioso se aplicava aos lugares onde se poderia viver uma vida próxima da dos anacoretas, os que abdicam do mundo para se dedicar à escrita ou à oração. E para tal, eram grandes os esforços para a sua criação, da qual temos o exemplo do Bussaco, onde se instalou o primeiro Deserto português, num empreendimento que envolveu a construção de um convento, várias ermidas que simulam grutas e a plantação de árvores, nomeadamente o cedro, pela sua conotação bíblica que visava a Jerusalém terrestre, o paraíso na terra.

Abdicar do mundo → criar um deserto → pensar o mundo. Ou, abandonar a cidade → assumir que é de artifício que se trata tudo o que é humano → voltar a ela com os olhos enxutos de bonomia. Olhar para tudo aquilo que tomamos como indomável, irreversível, e entornar-lhe um pouco de ciência e poesia. Ser capaz de descobrir no antepassado do Bussaco, com a respectiva inversão de um espelho, um monte natural que podia ser vertido em monte artificial (1).Por outras palavras, a noção de que o deserto onde possamos pensar o mundo terá de ser construído por nós.

Contudo, não chega ficarmos por aqui no que diz respeito ao tropo cidade-deserto-artifício. Lástima, solidão, renúncia, esperando que da consciência desponte algum sossego. Há desertos repletos de violências no anel largo dos trópicos, com os seus tucanos e cigarras — um apartamento cada vez menor dentro dessa densidade que exclui o homem das florestas. Também os há quando as cidades parecem ficções, com os corvos e os cigarros, cenários de assaltos à mão armada, atropelamentos e fugas, desamores e outras tipologias de crime, que inauguram o realismo com um certo grão e frases da mais fina literatura, de tal forma que, antes do uso obrigatório de máscara, quando vigorava ainda o uso dissimulado de máscara, já a estupidez fazia de nós actores do lado errado da disputa — nós, colocando-nos na opulência dos outros, assistindo aos outros a fazer pouco de nós, assistindo ao pouco que somos nós, assistindo, assistindo. Assistindo às nossas cidades, onde esperamos em ralenti pelo verde que nos liberte; onde vibramos tenuamente com o final do dia ao mesmo tempo que sacudimos as cinzas para que o vento as leve numa tempestade, cruzando o olhar com o condutor do lado, cujo desmazelo nos retribui a certeza de que a única coisa que partilhamos é a ânsia de regressar a casa e de voltarmos a ser sós nesse castigo.

Porque estamos, desde a sentença de morte de Sócrates, à espera que a filosofia faça as pazes com a política (2); porque deixámos de andar a pé, ora porque a distância casa-trabalho não se coaduna com as horas extras que demos à casa, ora porque o céu não se apresenta como na informação meteorológica em que confiámos na noite anterior, ora porque não queremos enfrentar aquela rua onde um dia recebemos um telefonema que nos atirou ao chão; porque simplesmente as casas, hoje, são feitas para estarmos sós.

Então, parece que tudo é válido para desistirmos do mundo. Arendt, escrevia no Pós-II Guerra e já em clima de Guerra Fria, que a actual crescente ausência de mundo, a extinção de tudo aquilo que existe ‘entre’ nós, pode ser igualmente descrita como o crescimento do deserto (3). Para ela, é por sofrermos as condições do deserto, que somos, ainda, humanos, residindo o perigo em aceitarmos ser parte dele. O deserto não está em nós, o que desembocaria num niilismo perigoso, mas nós no deserto. Não há nada de errado em viver nesta condição em que o deserto é tudo aquilo que está entre nós — o mundo é sempre um deserto — desde que nos livremos do perigo oposto, o do escapismo, que é a vontade de fugir da vastidão das dúvidas, da política, cobrindo os oásis de areia para aceitar o deserto como a nossa terra.

E eu, que me passeio nos trilhos do Bussaco, e que nunca vi nesse lugar senão um escape, repenso na forma como devo encarar essas incursões abissínias (até Rimbaud se sujeitou ao deserto por motivos nunca devidamente explicados). Se como uma maravilha que podemos erguer num terreno expectante, e aí não diferindo assim tanto de um oásis; se como um conceito onde se desconjunta a nossa existência plural e no qual estamos todos sujeitos a uma errância sofrida, não necessariamente desistente, que nos apresenta os oásis como lugares de descompressão onde podemos levar a água à cara, refrescando-nos com outras dimensões independentes do que é político (4): no isolamento do artista, na solidão do filósofo, na relação sem mundo que é inerente às relações entre seres humanos tal como existem no amor e por vezes na amizade — quando o nosso coração acede directamente ao do outro, como na amizade, ou quando o espaço-entre, quer dizer o mundo, se incendeia, como no amor. (5)


(1) Paulo Varela Gomes em Buçaco, O Deserto dos Carmelitas Descalços.

(2) […] O conflito entre a filosofia e a política, entre o filósofo e a pólis, deflagrou porque Sócrates quisera – não desempenhar um papel político – mas tornar a filosofia importante para a pólis, escreve Arendt, rematando que o resultado desta divisão que nasce da morte do filósofo descambou também na morte da filosofia, abrindo o espaço da apolitia: o desprezo pelo mundo da cidade. Em A Promessa da Política.

(3) Veja-se como a actualidade é tão mais estática do que pensamos. Como o pensamento, as narrativas, não são entidades tão degenerativas — à mercê de — como a tecnologia que, avançando a “um ritmo nunca antes visto”, embate sempre na base pétrea de uma ética tão antiga que é a de conseguirmos viver todos juntos.

(4) Com as devidas precauções, admitirei aqui que existem dimensões apolíticas da vida. No futuro, podem usar esta alínea contra mim.

(5) Hannah Arendt em A Promessa da Política.