Número 23

25 de Junho de 2022

O DESPLANTE

Direito de Resposta

FREDERICO MARTINHO

Num destes primeiros dias quentes, quando o corpo reclama das sombras as suas suaves escuridões, fui acusado de me apaixonar facilmente. De início senti-me atacado, mas, sem dar parte fraca, cuidando do flanco alvo, cerrando os dentes como um soldado imperturbável, mastiguei o sustento do prato que me serviam, a goma do arroz, o visco do cogumelo, o estalo raivoso das avelãs a quebrarem na boca. Queria responder que não, que não sou de paixão assim tão fácil, que não me ofereço aos olhos dos outros com o mesmo vagar com que me encostava na cadeira, que não desejo todas as bocas como todos os becos, nem me viciei no abrir de corações na tábua para lhes provar o travo da acidez.

E ali estava eu, louco de paixão, num berço de encantar o mais impassível dos homens, sob o verde saturado de uma tangerineira, escoltado pelos ciprestes que nada aparentavam de fúnebre, mas de folia. O contraste das lâmpadas penduradas de um lado ao outro do pátio empedrado aumentava com o descanso do Sol, naquela noite de Verão antecipada, que mantinha o ar morno a preencher o espaço entre nós os três. Um ar tão morno e opaco que nos encostava uns aos outros mesmo à distância do tampo de uma mesa.

Enquanto digeria essa acusação cada vez mais benigna quão mais avançada a digestão do jantar, reparava no plano sobranceiro do pátio sobre a cota (inferior) da rua enquanto um de vocês admirava a forma como o espaço público da cidade estava tão bem desenhado. Havia, nela, um cuidado extremo no contacto de cada muro com cada empena, uma emoção, extrema mas enxuta, nas proporções medievais da construções, uma geometria exemplar no trabalho de transformação das pendentes naturais em degraus ou em bancos, ou em bancos-degraus, degraus-auditórios, degraus-conversas onde os homens e as mulheres se fazem gárgulas de carne e paródia.

Talvez eu olhe para a cidade e perceba que há lugares feitos para mim, para nós, que justificam um trato diferente, menos ordinário, menos calculista (mas não necessariamente menos pensado), mais propenso para o abandono do corpo à segurança do desenho e das proporções contidas em corpos maiores: a praça, a rua, o teu peito. Neste momento já pouco me afectava o feixe de acusação que reflectiu da inversão de um espelho frio. Se eu sou de paixão fácil é porque não desisto da forma das coisas. Procuro-as, incessantemente, nos lugares disponíveis para me receber. Existe ainda, por defeito, um analfabetismo (quiçá irresolúvel) no que toca ao amor, e que Barthes intuiu em fragmentos, forçando uma proximidade aos devaneios dessa coisa fértil e insana das relações entre afectos, atracções e aparências.

Eu, que desembainho imprudentemente a lâmina do encantamento no ar, tenho para mim que a tendência para o amor não será muito diferente da tendência para a atenção. Para ambos existe um trabalho de rasgo, mais do que de tempo, que acomoda a natureza, disforme, num conjunto de pedras, artefactos, palavras, cadáveres, vegetação, notícias e acasos, que, juntos, elaboram aquilo que alguns chamam de paixão, outros de arte, outros ainda de progresso, de sagrado ou sublime. Um edifício estético — tudo é estética — que se ergue de amor ou de beleza: o apaixonado é, portanto, artista e o seu mundo é bem um mundo às avessas, pois toda a imagem é o seu próprio fim. (1)

(Mas também um recomeço.) Então, sim, tragam-me a conta para este jantar; cobrem-me, no fim, a conta da predisposição para a paixão, pois a noite caiu e a cidade seduz-me ainda mais. Chamem-me para dentro dela, afoita, iluminada, gemendo atrás das portas entreabertas, enquanto as gentes se passeiam nela sem se aperceberem da ardência que emana do granito negro e da perfídia das luzes nas janelas. O que as cidades (as sedutoras) nos ensinam, é que também nós estamos sujeitos à sua disponibilidade em nos receber nesse sussurro lascivo. Assim, tão mais crucial do que estarmos propensos para a paixão será compreender ou encontrar, com sorte, esses altares que nos desejam. Eu entrego-me nesse leito que me deseja.

Agora já saberia o que responder. Não é que eu seja de paixão fácil. A questão não reside nesse momento em que nos entregamos a uma pessoa, a um objecto ou a uma missão, mas na forma como todos eles se amontoam, numa espécie de belo-fora-de-nós, obrigando-me a aceitar o lugar do fogo — e, pergunta Barthes, porque razão durar é melhor que arder? (2) No final, nós os três, somos três maneiras diferentes de abrirmos hipóteses para tudo o que não é natural (3). Quando nos acusamos de paixão, fazemo-lo em busca de novos artíficios, desligados da natureza, chegando mesmo a desprezá-la, no limite do querer.

Em jeito de resposta: eu quero é comer as formas do mundo e as formas inventadas por nós, que se multiplicam sempre inacabadas, expectantes, por vir. E sim, podem chamar-lhe de paixão fácil, não me interessa se ressuscito na obcessão de Werther ou se encarno em Casanova — façam de mim uma nova corrente — pois é de amor e de fome que eu trato quando vos recebo nas minhas imagens, que se voltam a reproduzir todas as noites em novas fugas e no prenúncio que te trouxe nas asas de um bom sonho.

1 Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso.

2 Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso.

3 Antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem, escreveu Bachelard em A Psicanálise do Fogo.