Hoje, 27/11, no espaço da ruína da Sociedade de Porcelanas de Coimbra, alguns dos autores de poesia da revista Osso dirão textos da sua autoria. Outros, mas não os mesmos, serão lidos por declamadoras convidadas.
Poeta que o seja, tem uma voz.
Valery escreveu sobre essa voz. A voz mais profunda é a voz fonte, primordial, onde não se deve distinguir narrador, nem eloquência. Nenhum traço autoral. O sítio, teta, odre onde nas palavras de Herberto Helder o pensamento perdeu-se e renasceu.
A voz do poeta é a forma única que ele tem, em alguns raros momentos, de ver a realidade de um ponto de vista que não é o habitual. Com as palavras que decantou. As imagens que convoca. As suas referências.
A voz do escritor é também o seu ritmo. As suas pausas e acelerações. A forma como constrói os seus textos.
Os achados, os neologismos, as surpresas.
A voz de um escritor são os seus temas.
Um escritor que escava na memória não pode ter o seu tempo no futuro.
Uma que comeu patriarcas nos lençóis de uma pensão do Norte não pode fazer crónica desportiva.
A voz de um escritor define o seu público, aqueles que julgam partilhar a sua sensibilidade. E não se muda facilmente de público.
A voz é o seu estado de espírito. E não se muda de espírito.
A voz de um escritor é como um vinho. Tem região demarcada. Percebemos a dimensão do terroir, a densidade, as castas, a idade das cepas, a altitude do terreno, o tipo de solo, a forma da vindima, a fermentação, o estágio, o ano da colheita.
A voz do escritor tem um destinatário. Uma dedicatória.
Du côté de chez Swann, o primeiro volume de A la Recherche du Temps Perdu, a obra prima de Proust, com sete tomos escritos ao longo de dezasseis anos e que durou catorze a editar, é dedicado a Gaston Calmette, editor do Figaro, assassinado em 1914 na sede do jornal.
Há poetas que dedicam cada verso que escrevem. A um amigo, um inspirador, um mecenas, um editor. Ao ler os poemas com endereço, sentimos a subtil mudança da voz do poeta e a presença mais ou menos discreta daquele a quem o texto foi dedicado.
Os declamadores leem os textos dos poetas.
Também há poetas que leem os seus textos.
Só conheço a voz de Ruy Belo através da voz de Luís Miguel Cintra.
Durante anos, achei que Álvaro de Campos tinha a voz de João Villaret. Mas podia ter a de João Grosso, de Germana Tânger, de Diogo Infante.
Mário Henriques Leiria tem a voz de Mário Viegas.
Sei como é a voz de Pedro Homem de Mello. De David Mourão Ferreira.
Reinaldo Ferreira, em Rosie, tem a voz de Fausto.
Na minha infância, Lorca tinha a voz de uma mulher chamada Germaine Montero.
Na rádio havia Germana Tânger e durante algum tempo, secretamente, julguei que Germana era o nome das mulheres que diziam poesia.
José Geraldo Marques da Silva apresentou uma Tese à Universidade de Coimbra intitulada Registos Sonoros de Interpretação Poética: análise dos modos de dizer poesia em Portugal, a partir das gravações em disco.
Essa Tese, de 2015, tem um curioso Anexo. Coisas sobre dizer Poesia (Antologia de Textos de Autores Portugueses).
Nesse Anexo reúnem-se textos de Sebastião da Gama, defendendo que o autor é quem melhor diz os seus poemas. Dirigindo-se a um dramaturgo, Carlos Queirós, ele escreve: “Há dias ouvi assombrosa interpretação do teu ‘Teatro da Boneca’. Tu serias obrigado a gostar, tenho a certeza. Mas o ‘Teatro da Boneca’ não foi assim que em ti o ouviste, que em ti o disseste.”
O poeta recita o seu poema com a voz que em si ouviu (a voz fonte) e que em si a disse (a voz poética).
Mais adiante uma carta de José Régio a João Villaret fala do talento de Manuela Porto com as seguintes palavras: “Todos os versos, todas as palavras se ouviam, – e com a sua expressão própria; ou, pelo menos, com a que lhe atribuía a sua interpretação sempre inteligente.”
Um livro de Carlos Santos, Excertos de A Arte de Dizer, editado na Livraria Popular de Francisco Franco, s. d. [1929], dirigido aos alunos do Conservatório, enumera dezenas de regras de pronunciação, articulação e Construção Correta, a que deve obedecer a “Arte de Dizer”.
Mas o texto mais interessante é o de Mário Dionísio, publicado num Suplemento Literário do Diário de Lisboa, de 14 de fevereiro de 1963. Mário Dionísio cita Paul Valéry:
Un poème est un discours qui exige et qui entraîne une liaison continuée entre la voix qui est et la voix qui vient et qui doit venir. Que ele explica assim: “Pois antes da sua execução o poema não existe senão como necessidade ainda obscura, como ansiedade, como perturbação, muitas vezes deliciosa mas que só se torna criadora quando se transforma em acto por meio de tal palavra que se despega de todas as outras palavras, nessa “ligação contínua”, de que também Valéry falava, “entre a voz que é e a voz que vem e que tem de vir”. Momento exaltante e terrível em que o poema vence ou para sempre desaparece
“entre a voz que é e a voz que vem e que tem de vir”.
Há uma diferença entre a voz que o poeta ouve (a voz fonte), ou a que através dele se materializa em palavras no poema (a voz poética). Esta, dita, segundo Barthes, “a morte do autor”. Isto é: uma vez fixado, o texto poético é autónomo. Pertence ao leitor ou àquele que o diz. O que o autor quis dizer não tem interesse. Ou, ainda nas palavras de Valéry : Uma vez publicado, um texto é como um aparelho com o qual cada um se serve à sua maneira. E conclui, à guisa de despedida : não é seguro que o construtor o use melhor que um outro.
Mário Dionísio afasta-se desta interpretação da autonomia do texto literário. Aceita que o poema é o processo da criação, o momento em que a voz fonte se transforma em voz do poema ou voz do poeta. A voz fonte é ouvida pelo poeta. A voz fonte não pode ser associada a nenhum sujeito, narrador ou orador, repito Valéry. A voz poética tenta fixar a voz fonte. Para Dionísio, aquele que diz, que declama a voz do poema tem de tentar aceder à voz fonte, perceber esse instante transformador, « …penetrar no íntimo segredo desses versos … esforçar-se por entender por dentro aquilo mesmo que declama !”
É por isso que no Encontro dos Carteiros, através das presenças assinaladas, seria interessante tentar ouvir a voz fonte e a voz poética.