A escrita nunca foi o forte do capitalismo. O capitalismo é profundamente analfabeto (1).
O capitalismo é profundamente analfabeto, recupera Mark Fisher em Realismo Capitalista – Não Haverá Alternativa?, suicidando-se sem resposta, provavelmente ciente do abismo. Ainda estou eu a descobrir que o amanhã depende da conjugação das palavras e já foi anunciado o cancelamento do futuro (2). Ainda estou eu a aprender a dominação das letras, dos vocábulos, a correcta utilização das vírgulas, de fazer circular o raciocínio numa sequência lógica, que ferve disforme numa revolta interior, inconsequente porque encerrada no seu lodo, e já velha prossegue a ideia de que chegámos ao fim da palavra. A escrita, como articulação e articuladora, terá terminado, como terminam as estações mas sem o retorno dos pássaros e os seus ninhos. Mas se a escrita morreu não foi pela extinção da palavra ou pela não revalidação dos autores danados, que confrontados com o silêncio ou o ruído, se dispuseram a tricotar os sobressaltos da vida com as paisagens que lhes enchiam os olhos de rochas, os vacilos das mãos em dedilhantes hábitos de costura.
Poder-se-à achar um exagero tamanho anúncio. Se o futuro poderá alguma vez ser cancelado — ainda que seja por demais consensual a ideia do seu adiamento, apenas por facilitismo e falta de coragem — ou se o capitalismo é analfabeto, é porque ambos os conceitos estão de tal maneira impregnados da gordura que resulta do abuso da banha e do desuso do banho, que de tanto aplicarmos as expectativas nas trocas, na moeda, no preço, abandonámos os apetrechos da linguagem que realmente prometem coisas novas como, por exemplo, fazer as pazes com o passado sem lhe aplicar o filtro mais prático para que a nostalgia se transforme numa criancice tardia. O mal não está apenas na fuga da escrita em si, ou na pobreza dos signos, mas no rubro em que se materializa a cidade-obscura. Parece não haver trabalho condizente com a pressão de ir atrás do prejuízo. O caos vai sempre à frente, seja das leis, seja dele próprio, bordejando, disléxico, de injustiça em injustiça, de sujidade em sujidade. Na mesma cidade-obscura, nos mesmos limiares do passeio, podem ler-se nas paredes abandonadas frases como: que terra é esta em que grafitti é crime e corrupção é arte? e outras, em altos e renovados frontões: VENDE-SE, contacte já as Marias dos Carmos das Silvas, nove um seis quatro dois quatro sete cinco três, acompanhadas de outros códigos numerários. Na mesma rua em que se desenham letras à pressa, angulosas, enganadas, ilegais, as coragens dos escritores noctívagos, empenhando o seu próprio sono, erguem-se em guindastes durante o dia aquilo que deveria ser um escândalo e que não passa sequer por doença. Também aqui há uma espécie de refúgio nocturno da escrita, relembrando os arquivos dos operários do século XVIII e a forma como a noite alojava o futuro (ainda considerado possível) na forma da palavra, do poema, do sonho. Ao contrário do que deixámos que nos fizessem, a obscuridade tornou-se um clarão. O capitalismo é o sol eterno (3), a retracção das pupilas perante o explícito do objecto, pelo aparato do consumo de cantos arredondados, para que possamos cegar sem nos ferirmos. O bolear das formas trespassou a linguagem: a eficácia, a segurança e o conforto eternizam uma infância que deveria ter acabado com a leitura de textos que nos cortem os dedos com as lâminas das páginas. Em vez de nos protegerem com livros de brincar, em vez de nos reduzirem o produto ao slogan, apresentem-nos as coisas como se elas fossem para durar, pelo menos, o tempo de uma estrofe. Mas não. Não se consegue ler de pupilas comprimidas, não se consegue crescer saudável sem a protecção de uma sombra que desvele o que o contraste do néon queima. O funeral da escrita faz-se já à luz do dia, e com ela o das cidades que branqueiam a noite, afastando os mochos e os condenados dos jardins. A mesma úlcera que nos apodrece a capacidade de articular as frases, de nos articularmos, é a mesma que nos analfabetiza as ruas quando não sabemos delas mais do que um nome de um defunto e a luz que pestaneja ao fundo, amarela de fome.
Nos arquivos do sonho operário, recuperam-se os textos das gentes que na impossibilidade de roubar tempo ao trabalho, roubavam tempo ao descanso, fazendo da escrita o reduto da aventura emancipatória — a inversão dos papéis de produtores estagnados a intelectuais apontando um futuro. Tudo isto roubado ao sono, tudo isto roubado à noite, onde e quando o capital ainda não era capaz de aceder: ao intervalo da luz — só a cegueira poderia trazer de novo à terra o utopista, impor-lhe a higiene das pequenas necessidades e dos pequenos desejos da vida real e concreta (4), escreve Rancière depois de um relato do sofrimento, das mutilações, das quimeras, dos suicídios e das ambições, dos homens e das mulheres que inauguraram a palavra futuro, juntos. Uma destas escritoras do futuro, Desirée Véret, costureira, fundadora do La Femme libre, que sofria da vista (chegando a cegar) e dos nervos (chegando a alucinar) acabou por servir o final de um livro que indica que há muitos, muitos anos, o futuro era uma ideia pujante, levada a cabo por gente esfomeada, enferma, velha, como os oitenta anos de Desirée – embora tenha vivido mais sonhos que realidades, temo as ilusões […] mas ainda me resta o suficiente para satisfazer o optimismo que dá cor às minhas decepções e me aguenta.
Se olharmos em volta, reparamos que deixámos de ler. Não só as palavras mas também as imagens, os sons, as texturas. Basta semicerrarmos os olhos, simular um pouco da própria realidade que é a cegueira, e perceber a desconjuntura da aproximação das cidades, das primeiras páginas das revistas, nos cartazes que atalham o caminho da ponderação para o instinto. É apenas para isto que serve este texto: um exercício anónimo de articulação. E Fisher, apenas mais um escritor do futuro, que, cancelando-o com palavras, lançou-lhe também algumas pistas. E eu, apenas um mero leitor que escreve, que concorda que se o capitalismo é profundamente analfabeto, também acredita que será sempre essa lacuna do capital o principal garante da utopia e da longevidade da escrita. (5)
(1) Mark Fisher vai buscar esta frase a Deleuze & Guattari, O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia: “A escrita nunca foi o forte do capitalismo. O capitalismo é profundamente analfabeto. A morte da escrita é como a morte de Deus ou a do pai – algo que já aconteceu há muito tempo, embora o acontecimento demore muito a chegar até nós, e sobreviva em nós a recordação de signos desaparecidos com os quais continuamos a escrever.”
(2) Ver a palestra de Mark Fisher – The Slow Cancellation Of The Future.
(3) Outra vez o Jonathan Crary.
(4) Jacques Rancière em A Noite dos Proletários – Arquivos do Sonho Operário.
(5) “A longa e escura noite do fim da história tem de ser encarada como uma enorme oportunidade. A própria difusão opressiva do realismo capitalista significa que até mesmo os vislumbres de hipóteses políticas e económicas alternativas poderão ter um efeito desproporcionalmente grande. O mais pequeno acontecimento poderá abrir um buraco na cortina parda de reacção que tem marcado os horizontes de possibilidade durante a vigência do realismo capitalista. De uma situação em que nada pode acontecer, tudo é de repente possível outra vez.” Mark Fisher em Realismo Capitalista, Não Haverá Alternativa?