Número 5

29 de Maio de 2021

O DESPLANTE

Do cansaço I

FREDERICO MARTINHO

Há uma coisa insuportável, como uma reverberação numa porta, que preenche as cavilhas dos argumentos em debate que não procuram a inteligência mas o estilhaço, que não resultam numa aporia mas numa rendição, e que é difícil de explicar no cansaço a que nos destinaram mas que tentarei colocar da seguinte maneira: o mundo tal qual o conhecíamos já não existia antes da condenação do morcego e do pangolim. Desenganem-se quanto à probidade da natureza. Riam-se do éramos felizes e não sabíamos. Tenho as provas comigo. Corria o ano de dois mil e dezanove, um ano como os outros. Os ricos enriqueciam, os pobres apareciam nas notícias reivindicando, com esforço, as suas vidas e o país era nomeado como o melhor destino do mundo. Mas um destino que implicava um regresso, um visto dourado ou uma reforma nórdica, portanto, não um destino — ou o melhor destino — mas uma estância, a melhor estância. Reservemos o destino para os que acreditam que o melhor está para vir, de crucifixo no peito e o comando nas mãos, para os que raspam com as unhas a sorte num cartão abençoado pela Santa Casa. Andava tudo à procura do destino, desde o homem que de tão magro se lhe contam os ossos em falta, àqueles que perseguem a riqueza sem terem antes percebido para que serviria tamanha fortuna.  Dois mil e dezanove ignorava ainda esta pandemia, mas poderia ser já colocado no calendário como efeméride de lassidão e de logro, pela forma como o cansaço dos crentes levará sempre a uma vitória dos infiéis. Eis a prova:

Tempos curiosos. Nos outdoors, nas escolas e nas entrelinhas do zeitgeist, nós seremos aquilo que sonhamos, donos do nosso futuro. As cidades prometem o que nos tiram – quantas vezes já tivemos que percorrer as estradas sem passeio? Já nas conversas à mesa, nos reencontros de amigos, no desabafo de ocasião, poucos escondem o desânimo. Vive-se um contraste doentio entre o optimismo higiénico de um anúncio e a frustração de uma geração obrigada a entrar no lodo pelos próprios pés. Este futuro, que se vende como se vendiam as indulgências no século XVI numa possível analogia entre o futuro como salvação e o perdão católico demonstra como nos tornámos reféns de uma ideia de sucesso projectado num amanhã mais risonho. Este futuro é um produto; o sonho uma farsa, ou no limite, uma trivialidade. O jovem adia o desejo para garantir resultados mais além. Chega sempre a horas e esquece o dever que tem com o próprio corpo, sedento de prazer. Caiu em desuso o contrário desse protótipo: o sair a horas ganhou um cunho de má-fé. Mas o adulto só descobre a mentira quando já faz parte dela, descarregando a frustração da armadilha que o enlaça num grande aplauso da dor, para que a hemorragia faça sentido aos olhos dos outros. Para que os outros façam sentido aos seus olhos.

Isto foi escrito quando ainda nos achávamos limpos e nos esbarrávamos nas ruas. Rabiscado quando o vírus existia apenas na selva, entre os animais, e nos lavávamos com as promessas de um novo produto ainda mais eficaz. No entanto, surgia já a higiene no vocabulário, comprometida com o optimismo, como se essas duas palavras juntas trabalhassem o repouso de uma consciência química. Um pousar das armarguras do dia numa superfície fácil de limpar. O sucesso das arquitecturas de gesso, dos apelos dentífricos, das ambições de brancura. A gratificação era sentir o soalho limpo, a banca sem gordura e a namorada a duplicar a sua beleza no espelho. Vivia-se o oposto do sonho: o possível — vivíamos entre reflexos sobrepostos: a limpeza, a crença e a fadiga, sem nos apercebermos, contudo, desta última, acreditando piamente que a culpa era nossa e da velhice do colchão. E prosseguia assim, com mais umas notas soltas que nunca soube como acabar e a que tento agora voltar com a energia possível, falhada a higiene do sono:

Agamben vai mais longe quando explica que as palavras fé e crédito estão intimamente ligadas pela ideia irónica de esperança (pistis, em grego, significa fé; trapeza tés pistéos, banco de crédito): Benjamin tinha razão em tomar o capitalismo como a mais forte das religiões. Um futuro em forma de crédito que justifica a dívida das vidas cansadas. Um amanhã que justifica as dores de agora. Agora mesmo, dói. Mas ontem disseram-me para ter fé, que a crise é uma oportunidade. Ontem encheram-me a barriga de açúcar, que já corre no sangue, e que sensação tão boa é esta de sentir o doce na boca e a espessura do sangue! Hoje estou de rastos e a escrever à noite como um proletário, mas sem ter cumprido a jorna desse desgraçado. A minha desgraça é outra: a minha desgraça é que o açúcar de hoje será a moldura da fraqueza de amanhã. Não sei de onde virá o cansaço, mas virá, numa modalidade  pré-pagamento.

Um cansaço que apenas veio reclamar vitória com o desconforto das máscaras. A dor que pende das orelhas, o ardor nos olhos, a dificuldade em respirar. Apenas isso é novo, ou, se quisermos, é essa a novidade: a de nos vermos confrontados com uma forma de cansaço tão mais óbvia e de trato tão mais infantil. Mas, bastará retirarmos as máscaras, soltar a cara para o sorriso, permitir a correcta lubrificação dos olhos e voltar a inspirar o ar público, o oxigénio dos outros, para voltarmos a ignorar a fadiga em que assentámos as nossas vidas e à qual votamos, displicentemente, a acção em forma de adiamento, delonga, triste-fé.