Número 6

12 de Junho de 2021

O DESPLANTE

Do cansaço II

FREDERICO MARTINHO

Voltemos a dois mil e dezanove. Esperava a minha namorada à porta da escola enquanto bebia do tempo a sensação de estar atrasado para amanhã. Nunca aprendi a lidar com a voracidade que implica viver nestas cidades e, contudo, sempre trocei dos que esperavam de mim mais um devoto cumpridor de tarefas através do zelo dos horários. Tornar-me-ia naquele que chega a horas, respeitando-as, obedecendo-lhes e, simultaneamente, o mesmo que as desmancha, brincando com o dever de fazer render o tempo que me exigem, enrolando os longos instantes nos dedos até que me sentisse suficientemente culpado para poder dizer que derrotei, naquelas brevidades, os três séculos de domínio capitalista que se alavancaram no controlo do nosso tempo. Mas o século que inventou a precisão das horas e subestimou o sol também inventou a evasão, o pretexto e a estimação da lua. Nessa tarde, para me proteger da estrela alta do verão, procurei uma sombra e, nessa sombra, sublinhava a lápis a seguinte frase: uma obrigação elementar da comunidade é garantir segurança a quem dorme, segurança não só dos perigos reais, mas também igualmente importante, da ansiedade que sente desses perigos (1).

Parece pouco para ter dobrado o canto da folha, mas estávamos em dois mil e dezanove, repito, e ainda não tínhamos descoberto a raiz da nossa frustração nocturna. Não tínhamos ainda percebido que o fracasso não era meu, nem teu (nem nosso). Demos por nós arredados da comunidade, não só porque nos tínhamos um ao outro, mas porque a própria comunidade deixou de fazer sentido como abraço: a segurança da comunidade transformou-se no funcionamento da sociedade, e nós, imberbes, apaixonados pela vida, deixámos de acreditar nela e na nossa paixão, porque não soubemos viver de outra maneira, desistindo de uma palavra tão bonita e tão conspurcada como essa que nasce do que é comum. Não soubemos praticar a leitura nem pedir ajuda àqueles que, lucidamente, já alertavam para o cansaço que é sonharmos, sozinhos, um futuro a dois. Muito menos soubemos cuidar a ansiedade que se propaga quando esse futuro é separado do ciclo do sono que nos permite reinventar os dias e as primaveras nos olhos.

Tornou-se mais clara, essa tarde. E dessa claridade rompeu uma relação mais complexa entre a noite, o cansaço e o amor; para além daquela que sentimos nas manhãs mais difíceis; para além dos ígneos capítulos de Byung-Chul Han e do ensaio de Crary (2), e que podemos encontrar, com alguma paciência e fastio, e mesmo fadiga, na forma como Rancière se embrenha nas pulsões operárias, recuperando dos arquivos uma luta que se fazia à luz das velas, nas trevas, contra as trevas: “Gostaria de ter sido pintor. Mas a pobreza não tem privilégios, nem sequer o de eleger esta ou aquela fadiga para viver”, escreveu um operário parisiense do século XIX. A pobreza não se define na relação entre a preguiça e o trabalho, revela-se, sim, nas vidas que não podem escolher a sua própria fadiga. Gostaria de ter sido pintor, de ter as mãos sujas de cor, de decidir para onde escorrer as lágrimas e o suor, de colocar na parede a obra que nasceu do meu cansaço. Gostaria de praticar o dia, experimentar nele, em plenitude, o pouco que me sobra à noite. Mas não apenas isso. Partilhar essa energia contigo (com vocês). Soltar o equivalente das mãos enegrecidas dos trabalhadores das fábricas para as enlaçarmos, mais ou menos calejadas, em algo que faça sentido juntos. Transportar o cansaço do dia para a noite, e, inversamente, o delírio do sono para o imenso diurno. Testar no sol a sedução e na lua o embalo.

Não se trata de dispensar a noite como refúgio poético e libertino das ditaduras solares, ou de decantar o dia da obrigação do trabalho, mas de tentar resgatar, retroactivamente, o ano de dois mil e dezanove — o momento em que o futuro nos fugiu — para o podermos desmontar à mesa e não na cama. Vencidos, sim, mas limpos dos indícios da humilhação que nos tentaram impor. Pois, se nos ensinaram que o século XVIII  foi o palco de uma revolução industrial, pouco nos explicaram que nessa revolução trabalharam homens, mulheres e crianças, às 16 horas por dia, a soldo de honra e um pouco de pão, e que a grande invenção não era ainda a máquina a vapor, mas as operações produtivas que não param, representadas pelas pinturas a óleo de paisagens nocturnas onde, pela primeira vez, as janelas das fábricas se iluminavam enquanto alta brilhava a lua. (3)

Será, talvez, tarde demais para salvar o futuro que tivemos. Será, com certeza, exagerado comparar-nos, de mãos brancas e macias, com a desgraça de um operário, ou a volúpia privilegiada do nosso tempo com aqueles serões exaustos – a voluptuosidade banhada dos suores do trabalho, como podes compreendê-la sem nunca ter trabalhado? — mas não tenho pejo em assumir do nosso progresso uma armadilha já tão antiga e tão moderna, que nos apanha pela urgência do ego e dos objectivos individualistas, cavando o mesmo fosso entre nós e o abismo da loucura que guiava os primeiros apóstolos de uma utopia ainda sem forma — Para mim, sou um operário marcado pelo destino […] A minha força robusta é muito simplesmente força nervosa, a minha coragem ousada é a coragem que galvaniza e os meus olhos negros são olhos loucos. (4) O tempo, o trabalho e a fadiga não mais se separariam na luta emancipatória de uma sociedade de adormecidos em que a loucura ainda se confundia com o pensamento livre e, nesse aspecto, pouco diferimos.

Que nos vendam as cidades que nunca dormem, que nos permitam consumir as vinte e quatro horas do dia, que nos entretenham com essa electricidade no bolso. Que nos roubem a noite a troco da exaustão, promovendo a nossa individualidade empreendedora. Mas não acatemos como prosperidade a ideia de nos isolarmos no sono. Essa derradeira experiência em que nos abandonamos à assistência de terceiros (enquanto dormimos confiamos a nossa vulnerabilidade aos outros) será, porventura, o último reduto da comunidade que cuida — não só o último momento do dia que permitirá o sonho, como o que resta da sensação de que há um corpo social que olha por nós nesse descanso.

Então, lembro-me como se fosse ontem, de desculpar o velho colchão que, abaulando no centro, nos juntava (no sono), e de esperar por ela à saída da escola (5) (por ti, por vocês) com uma nova ideia de combate ao cansaço que nos fazia adormecer, opostos, nas laterais, e acordar, inseparáveis, na depressão da cama. Estávamos em dois mil e dezanove, não apenas aflitos de nós, moídos dos outros, mas, sobretudo, carregando um cansaço que dura há trezentos anos.

Amor, a culpa não era nossa.



(1) Jonanthan Crary em 24/7 – O capitalismo tardio e os fins do sono.
(2) Byung-Chul Han recupera o cansaço descrito por Handke, que não é o cansaço do Eu, o esgotamento do Eu, a exaustão do Eu, mas sim aquilo que o escritor descreve como “o nosso cansaço”; Crary alerta para a extensão infinita do tempo que nos tornou sonâmbulos, vinte e quatros horas, sete dias por semana.
(3) Ver Arkwright’s Cotton Mills by Night, de Joseph Wright, 1782.
(4) Gauny a Retouret, 2 de Fevereiro de 1834. Em A noite dos operários – Arquivos do sonho operário, Jacques Rancière.
(5) Ver La Sortie de l’usine Lumière à Lyon, dos irmãos Lumière, 1895.