Relatório Kinsey
Se sou casada? Sim. Quero dizer com isto
que se levantou um registo numa qualquer repartição
e se tornou amarelo com o tempo
e que houve cerimónia numa igreja
com padrinhos e tudo. E o banquete
e a semana inteira em Acapulco.
Não, já não posso usar o meu vestido de boda.
Ganhei peso com os filhos,
com as preocupações. Você bem vê, não faltam.
Com frequência, que posso prever,
o meu marido faz uso de seus direitos ou,
como gosta de dizer, paga o débito
conjugal. E vira-me as costas. E ressona.
Eu resisto-me sempre. Por decoro.
Mas, sempre também, cedo. Por obediência.
Não, não gosto nada.
De qualquer forma não deveria gostar
porque sou decente, é tão físico!
Além disso outra gravidez preocupa-me.
E esses gemidos fortes e o ruído
das molas da cama podem
despertar as crianças que depois não dormem
até ser madrugada.
Passaporte
Mulher de ideias? Não, nem uma sequer.
Jamais outras repeti (por pudor ou falha nemotécnica)
Mulher de acção? Tão pouco.
Basta olhar para o tamanho dos meus pés e da mãos
Mulher, pois, de palavra. Não, de palavra, não.
Mas sim de palavras,
muitas, contraditórias, ai, insignificantes,
puro som, vácuo peneirado de arabescos,
jogo de salão, piada, espuma, olvido.
Mas se é necessária uma definição
para o bilhete de identidade, aponte
que sou mulher de boas intenções
E que pavimentei
um caminho direto e fácil ao inferno
Tradução de Luís Januário
Rosario Castellanos é uma das escritoras fundamentais do século XX, em língua castelhana.
Nasceu no México em 1925 e morreu de acidente em Tel Aviv, em 1974, quando aí era embaixadora. O interesse por esta mulher singular que restituiu aos índios de Chiapas as propriedades que herdara, foi recuperado por Amalia Bautista numa edição de Renacimiento, Sevilha, de 2012, que prefaciou. Entre nós, a Antígona publicou em 2020 uma pequena Antologia bilingue, com traduções de Jorge Melícias.