Número 38

2 de Março de 2024

MÁQUINA DE NADEGUEIROS

Encapar: valsa lenta

LUÍS JANUÁRIO

Derivado do coração, o Editor faltou. E faltou um outro, aflito da garganta e faltou Mendes, derivado da febre da filha.

Então éramos sete, mais a Professora e dois ajudantes dela, que pareciam resumir a história da encadernação e se veio a saber serem a filha e o pai desta.

Passa-se isto numa antiga fábrica de cerâmica onde agora alguns artistas têm atelier. Em baixo é a linha do Norte e ao fundo, muito perto e no entanto inacessível, vê-se a Estação Velha de Coimbra, Coimbra B, assim chamada.

Foi lá que fui esperar Inácio, que chegou à hora em que se cruzam os dois Alfas da manhã. Tocavam os semáforos que impedem o atravessamento dos transeuntes e fiquei a ver os passageiros a assomar à frente do comboio. Pensei que aquele era ainda um monstro de metal temível, com o seu focinho aerodinâmico e tive saudades da banda desenhada de Schuiten, o arquiteto utópico que desenhou La Douce e o Museu bruxelês de Schaerbeek.

Inácio foi o último a sair das carruagens. Estava uma bela manhã de primavera, embora fosse fevereiro. Ele trazia óculos escuros e um garrido casaco de pescador. Evito sempre qualquer hesitação nas salas de espera das estações de caminho de ferro, pois foi ela que perdeu Max Jacob. De forma que cumprimentei Inácio e, sem mais demoras, conduzi-o para o parque automóvel onde acabava de chegar Clarck Dulmo, outro dos inscritos, membro influente da Osso, embora na categoria de não residente.

Fomos pontuais na velha fábrica. Ao mesmo tempo que o Bastos e o Lucas. O Bastos trazia um saco do Continente com o primeiro volume da Osso, trinta cadernos. O Lucas, uma caixa de papelão com sete reimpressões, para os que queriam evitar que a encadernação fosse feita com papel dobrado e vincos. Em linguagem técnica: para que os festos do miolo viessem planificados e os cadernos acertassem. Mas, embora seja uma tentação, não vou usar o léxico da encadernação senão para o que for impossível designar de outra forma. A encadernação é muito anterior à tipografia, lembrou a Professora Maria na introdução. Ela tinha o sotaque das meninas que cresceram em Santarém, no século XX, ao cuidado de tias e madrinhas. Na introdução debruçou-se sobre alguns aspetos do seu longo curriculum dos quais retive: a Escola de Ofícios em Alverca, o trabalho na Fundação Espirito Santo e a criação do Chronos paper, restauro de livros e encadernação, ali sediada e com página on line.

Éramos sete, voltámos a contar. Freitas e Vanda, o Bastos e o Lucas, já citados, Clarck Dulmo e Inácio.

Freitas e Clarck Dulmo são leitores. Os restantes animam a Osso. O miolo e, de forma desigual, jantares, site e os retiros.

Na ronda de apresentações, Freitas disse trabalhar na conservação do património e falou com entusiasmo do workshop Faça uma cadeira. Clarck Dulmo apresentou-se como solicitador, Bastos é especialista em mobiliário chippendale, Inácio é filósofo com uma tese sobre Stuart Mill. Veio para se encontrar com Mendes, e a ausência deste, apesar de justificada, dececionou-o. Lucas pareceu surpreendido com a necessidade de se apresentar à professora. Depois de uma longa pausa em que as suas várias ocupações  lhe semicerraram os olhos, exclamou, algo relutante:

— Dou aulas.

Vanda fez uma longa intervenção que, agora que escrevo, não consigo reproduzir, mas em que julgo ter percebido uma alusão ao Auto da Barca dos Infernos.

Eu trabalho nos Correios. A professora deitou-me um olhar oblíquo e concluiu:

— Reformado dos Correios?!

E eu, ligeiramente ofendido:

— Faço uns biscates. Ainda trabalho.

Cada um tinha uma mesa e cada mesa estava equipada com um enorme cartão, uma caixa de papel, linha de fio Coats, uma agulha, um lápis e uma borracha, uma dobradeira de osso ou de material plástico, uma lata de cola de madeira, um pincel, uma régua e um esquadro metálicos, tesouras de papel e tecido, fio de cânhamo. Havia ainda uma prensa, um serrote de costas, um martelo, folhas de papel de alta gramagem e material de cobertura em papel e plastificados, fita de transfil, talagarça e tela.

Como os cadernos estavam tosquiados passámos rapidamente à marcação dos sulcos e à serrotagem. Tive receio de ir demasiado fundo e disso se iria ressentir a costura, pois os sulcos que talhei, muito superficiais, obrigaram-me por vezes a abrir os cadernos e procurar os festos, para perceber onde entrar com a agulha.

Quase todo o tempo foi gasto na costura.

Cometi alguns erros que passo a enumerar: não vinquei convenientemente os festos, fiz, como já disse, uma má serrotagem, durante a costura não mantive uma posição correta do corpo nem da mão esquerda, não treinei o nó de tecedeira, indispensável para a cozedura à portuguesa, nem sempre fiz laçadas corretas e não estiquei convenientemente a linha nem as cordas nas laçadas, falhei alguns remates. Mas o meu erro principal foi ter escolhido um fio de comprimento excessivo. Cinco envergaduras ou sete comprimentos do caderno a cozer parece-me, para um principiante, demasiada linha. A formação de nós tornou-se inevitável. Ensarilhado, perdi algumas vezes o ânimo. Valeu-me a Alexandra, a inefável filha da professora Maria, que depois de prestar assistência ao Bastos veio, pacientemente, dar-me confiança e apoio técnico para os últimos cadernos.

Registei, resumidamente, alguns momentos especiais:

10:00 O Bastos parece mais jovem e mais magro. Traz a sua inseparável mochila. Senta-se no lugar do sacrifício, de costas para a luz.

11:22 Freitas tem traços bem vincados e ocupa o lugar mais afastado da sala. Concentra-se facilmente e parece executar antes dos outros. Irradia tranquilidade. Gosto do timbre da sua voz. Já esteve no workshop “Como fazer uma cadeira”. Talvez leia mesmo a Osso. Alguns textos, pelo menos.

11:32 A Vanda cose muito bem, aplicada em entrar e sair pelo mesmo buraco. É a primeira a ganhar ritmo nos gestos da costura: entra, deixa uns centímetros de fio, sai, volta a entrar, deixa laço, sai, deixa laço na fita quando reentra, chega ao fim e remata.

11:45 O Lucas, e todos quase ao mesmo tempo, percebemos que a reimpressão do caderno é medíocre. Há páginas em branco e fotografias queimadas pela sobre-exposição. Cresce a sensação desagradável de estarmos a encadernar algo que não vale o esforço.

11:53 A Vanda deve ter recebido uma mensagem cardíaca.

11:53: O Lucas deve ter recebido uma mensagem do Mendes.

12:00 Os olhos de Inácio enchem-se de humidade. Não quer dizer que chore. É apenas o funcionamento normal dos olhos dele. Ou um hábito que ganharam nas ilhas.

12.20 Carlos, o pai de Alexandra e Alexandra, a filha da Professora Maria, levam para a oficina anexa os materiais para cortar as capas. Têm a dignidade do pergaminho.

12:28 Entram e saem Três Parcas, em fila indiana, silenciosas.

13:20 Chegam os ausentes. O Editor percorre as mesas com palavras de saudação e encorajamento. Traz o coração a tiracolo.

Mendes vem de jardineira e óculos graduados. Dá uma palavra de ânimo a cada participante.

13:30 Mendes e Clarck Dulmo, de bruços sobre a minha cadeira, tentam corrigir a costura, imprimindo mais tensão ao fio. Mas a contínua laxidão da costura persiste, apesar da aplicada insistência. Irremissível.

13:35 Inadvertidamente Bastos abre um caderno da Osso. E lê. Foi ele quem escreveu aquilo? Continua a folhear. Tudo lhe parece estranho. Os temas, as autorias. Descobre uma gralha. Depois de tanta revisão. Depois de tanta inspiração. Depois de tanta moderação, tanta contenção.

13:42 Inácio está em frente de Bastos e vê-o a ler os textos da Osso. Picou-se na agulha. Não há dedal, falta material. Faz um esgar, breve, de dor. E também nele cresce a inutilidade do exercício a que se entregam. Encapar o quê? Preservar o quê? Valerá a pena? Fazer durar algo que talvez não tenha sido lido. Ou tornar mais inacessível. Encapar, esconder. Um leitor futuro abrirá esta revista encadernada e lerá, distraído, algumas páginas. Condescendente, com a superioridade de gerações de crítica literária, talvez aqui e ali se surpreenda, um neto de Inácio com os olhos falsamente emocionados.

13:50 Mendes apercebe-se de que há no ar uma qualquer hesitação. Perspicaz, cheira-lhe que não é o problema técnico da encadernação que está em jogo. Aproxima-se mais de Clarck Dulmo e diz, estridente, dirigindo-se de fato para toda a sala:

— Parece que há quem esteja preocupado com o miolo. Concentrem-se no continente, lindos. O trabalho manual enobrece. Deixem o miolo em paz. Estão à espera de quê? De se reconhecerem no que escreveram? Parecem o Zé Cardoso Pires depois do AVC. De Profundis, Capas Lentas! Bando de afásicos. Cosam e colem e cortem e acertem, que é para isso que aqui estão. O miolo é dos leitores. Não há leitores? Então vamos mas é ao almocinho.

14:00 Almoço. Dobrada com feijão; vitelinha; café. Nove euros. Os televisores dão Trump. As mesas estão ocupadas por crianças penduradas em telemóveis e por casais cansados. Mas há dois grupos animados e um deles é o nosso, derivado ao Mendes.

Depois de almoço o Editor e Mendes despediram-se e nós continuámos. Foram só os dois a ir embora mas o grupo pareceu mais pequeno ou foi o sol que baixou depressa demais no horizonte. É incrível como a construção industrial é escura, os aposentos parecem todos avessos à iluminação, os corredores são frios, a louça sanitária austera, tudo recorda os tempos difíceis de proletários hirsutos e capatazes mesquinhos.

Acabada a costura passou-se à preparação das pastas. O grupo dispersara e eu perdera-me, derrotado pela falta de perícia e pelo excessivo tempo gasto na tarefa. Percebi que os meus colegas tinham preparado as capas e as coberturas e que já cortavam as lombadas. Alguns adiantavam-se e seguravam o miolo, preparado com lombada de tela, o transfil aplicado na cabeça e pé.

De repente era muito tarde. Já o Lucas tinha lido ao Inácio os horários dos comboios ascendentes, Clarck Dulmo recebido mensagens inquietantes, Bastos fumado um cigarro no exterior, Freitas vagueado pela sala com chá e scones e Vanda segurado o seu miolo contra o peito. Lucas tornara-se mais grave.

Foi quando a Professora disse que tinha de dar uma má notícia.

Não era capaz de me recordar de nenhuma boa notícia nos últimos tempos, pelo que este género de ameaças me deixa sempre num estado de apatia sem expectativa.

Dizia ela que os miolos não tinham tido tempo de secar para a colagem às capas, e que a sessão ficaria, assim, inconclusiva.

Um dia, no futuro, acabaríamos o trabalho, se se desse o caso de voltarmos a coincidir naquele local.

Não tosquiara os cadernos, serroteara com pouca profundidade, cosera sem tensão no fio, rematara sem nó certo e colara à pressa. Em todas estas atividades fora ajudado, como as crianças com pais demasiado diligentes. E estava cansado. Perdera o miolo. Não me recordava sequer dos textos que escrevera. O Inácio e Clarck Dulmo, Bastos e o Lucas pareceram-me tão longínquos como a Vanda e Freitas. Senti que, por qualquer motivo obscuro, era urgente garantir que o Inácio apanhasse o Intercidades das 19:45 e Clarck Dulmo se juntasse ao homem que a viria buscar a este lugar outrora recôndito.