Número 15

27 de Novembro de 2021

BOLSA DE VALORES

Engomadoria

HÉLIO BARATA

A casa onde nasceu, viveu e morreu Manuel Adérito Reboredo (1878–1949), engomadeiro de profissão e autor da primeira — e até hoje única — Recolha de Pífaros Tradicionais Portugueses em Madeira de Pinho da Beira Litoral (edição de autor de 1907), foi recentemente comprada por um grupo imobiliário internacional que pretende transformá-la em apartamentos cujo target são as famílias de jovens herdeiros. Sito no Beco das Cruzes, uma localização privilegiada no Centro Histórico de Coimbra (cidade média do centro de Portugal) classificado como Património Mundial pela UNESCO, próximo de todo o tipo de comércio e serviços, universidade, museus, monumentos, parques, transportes urbanos e intercontinentais e com vistas privilegiadas para o leito de cheia do rio Mondego (o maior do mundo em território exclusivamente português), o edifício tem sido, juntamente com a obra do seu locatário histórico, objeto de sucessivos insultos à memória.

Até hoje, e a despeito dos insistentes apelos nesse sentido feitos pela Sociedade de Amigos do Pífaro, nem uma placa evocativa foi afixada no edifício, herdado pelo um sobrinho de Reboredo e cuja loja continuou, durante uns anos, a ser uma engomadoria. Está hoje ocupada por um grupo de ação popular com ligações à distribuição de seringas que já foi informado do despejo iminente, aviso que, aventam as autoridades, terá constituído a centelha de um pequeno incêndio nas instalações prontamente debelado pelos bombeiros. Os andares superiores sofreram um sem número de alterações impostas pelos sucessivos locatários, que assim comprometeram o seu valor arquitetónico. A recuperação envolverá o dispêndio de quantias fabulosas em gesso cartonado que justificam o futuro preço, inacessível ao vulgo, dos estúdios e T0 triplex em que o edifício será dividido. O próprio exterior também não escapou a intervenções que desfiguraram as fachadas, nomeadamente através da colocação de janelas de alumínio dourado, algumas das quais exibem cartazes que nos informam que vai ficar tudo bem, como se não estivesse já tudo mal, e/ou do menino esquecido de quadras festivas transatas. Os grafitos decorrentes e muitas vezes referentes ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas e outros estupefacientes, bem como a proezas relacionadas com a prática do sexo não reprodutivo, disfarçam as rachas que se foram abrindo e que nunca ninguém pretendeu reparar.

Há a realçar que a Recolha, obra simples e despretensiosa da juventude do engomadeiro, cujo principal interesse reside no facto de ter sido produzida num tempo em que ainda não se tinha generalizado na província a noção de que só o passado existe, nunca foi alvo de reedição, restando apenas alguns exemplares dispersos pelas mãos de particulares cujo apego ao papel antigo não foi certificado por nenhuma entidade. Do mesmo modo, e salvaguardando as diferenças de meio, a casa onde viveu o autor será também condenada a um destino obscuro, neste caso ao fim mesquinho da habitação, onde pessoas desconhecidas de todos e desconhecedoras de tudo irão dormir e cozinhar hamburgueses veganos, ao invés de se ver transformada em sede ou sucursal ou polo ou plataforma de uma instituição com fins culturais, como é regra — e devia ser lei — em todos estes casos. A isto têm sido indiferentes os poderes fáticos, fácticos e enfáticos, surdos aos pedidos provenientes das profundezas da sociedade civil. Se é no respeito pela cultura, pelos maiores da nação e pelas colónias de gatos silvestres que se vê a grandeza de um país com mais de quatrocentos anos de história e das suas gentes, então sabemos muito bem para onde estamos a caminhar.