Número 8

10 de Julho de 2021

A CANFOREIRA DE BENCANTA

Escritores, escritores e leitores

LUÍS JANUÁRIO

Um murmúrio percorreu a sala da Comunidade de leitores.
A que tu pertences, “You! hypocrite lecteur! —mon semblable, mon frère

Estava presente um Escritor.
Falo de um tempo em que quase não há leitores. Há sobretudo escritores. Muitos escritores. E alguns raros Escritores.

As livrarias estão cheias de novíssimas edições. As bibliotecas, desertas, abarrotam de livros. Se por acaso alguém os folheia, estão secos, têm as páginas coladas como as aderências do bálano ao prepúcio.

Os livros que ninguém lê são periodicamente abatidos, aos milhares de milhões, como a dívida da Banca. Nenhum Escritor ouve os gritos dos livros abatidos?

O Escritor não se mistura com os leitores. A menos que sejam os seus leitores. Uma comunidade que se dedica ao estudo e contemplação da sua Obra.
Os Escritores vivem (mal) entre Festivais de Escrita.
Os Escritores não leem, com medo de perder avós.

De perder a voz. A voz do Escritor é uma voz hereditária. As suas influências, se as tem, são as do Cânone. O escritor não tem influências. O Escritor é uma influência.

Os leitores, de vez em quando, transformam-se em escritores.

E em Escritores. Já aconteceu.

Um grupo de leitores edita uma revista. Ninguém a lê. Nem os próprios. Porque agora que são escritores, deixaram de ler.

Um grupo de Escritores edita uma revista. Ninguém a lê. Nem os próprios, que não estão para leituras. Um Escritor, entrevistado recentemente, disse que nunca lia os seus livros. Mal escrevia a última linha, desinteressava-se totalmente da sua ficção. Os Escritores são professores de literatura. Os alunos leem as Obras escolhidas, em resumos, para os exames nacionais.



Coleção Resumos. Obras literárias
Vida e obra do autor
Resumos de todos os capítulos
O essencial sobre: Espaço e tempo | personagens ! Linguagem, estilo e estrutura | Análise dos capítulos fundamentais.



No dia do exame, o Ministério contrata uma empresa de leitores que vai às escolas ler os enunciados aos alunos.

Os Escritores dão cursos de escrita criativa. Nesses cursos, os leitores transformam-se em escritores de escrita criativa.

Os escritores de escrita criativa já só conseguem ler a short list do Booker prize.

Há tão poucos leitores, que os prémios literários passaram a ter prémios ex aequo.

O único membro do júri que lê os livros concorrentes é o advogado que representa a Fundação.

De vez em quando um Escritor cala-se. Fica de trombas. O silêncio dos Escritores de trombas junta-se ao silêncio que rodeia os Escritores antes celebrados. No tempo dos leitores. Um grande silêncio rodeia a escrita. Os Escritores quebram o silêncio escrevendo sobre o Ressentimento.

O lugar do leitor é o lugar da inocência.Só é possível a literatura infantil. Os únicos leitores são as crianças. As únicas livrarias que resistirão à guilhotina são as de ilustração.

Cada Escritor tem um leitor. O leitor do Escritor passou a ser um personagem incontornável. Alguns Festivais, com os subsídios cortados, contratam agora o leitor do Escritor, que fica mais barato.

Uma noite, em Paraty, conheci a leitora de Vitor Hugo Mãe. “Convinha que fosse noite e que se risse”.

Alguns Escritores, saudosos do tempo dos leitores, estão agora a criar Festivais da escrita com pomposos nomes saudosistas, como Dubai 1847.

Em 1847, Currer Bell escreveu Jane Eyre. Currer Bell nem sequer era bem uma escritora. Ainda hoje (ontem) tem muitos leitores.