Número 6

12 de Junho de 2021

A CANFOREIRA DE BENCANTA

Eu já não sei

LUÍS JANUÁRIO

(ao João Paulo Conceição)


Há uns anos, quando não conhecia bem alguns dos intervenientes, vi o videoclip de Eu Já Não Sei, do álbum de 2009 Pra Se Ter Alegria, de Roberta Sá. Sempre que o revejo impressiono-me com a sua execução tão feliz (https://youtu.be/CnCAi3OdDeA).

Começa com um grande plano de Yamandu Costa.  Yamandu é um instrumentista e compositor nascido no sul do Brasil, que no seu período de formação tocou a música gaúcha da Argentina e do Uruguai. Tornou-se um virtuoso do violão de sete cordas conhecido em todo o mundo, onde sozinho encanta plateias. Neste registo de que falo, toca com uma expressão corporal e facial que virá a ser repetida em menor extensão por todos os participantes e que é um misto de enlevo, prazer, fervor, alegria e cumplicidade. Estas expressões não são planeadas, preparadas, coreografadas segundo um critério estético ou de promoção dos executantes. Ele e Zambujo percebem o efeito que provocam no espectador e fazem trejeitos e esgares que comunicam a certeza de serem reconhecidos como interpretes de exceção, capazes de respeitar a referência clássica e de a trazerem imaculada, reconhecível, mas ao mesmo tempo transfigurada. Ao interpretar, o círculo de cumplicidade que connosco estabelecem confere-nos a possibilidade de nos sentirmos conhecedores, de tomarmos o fado como coisa séria e menor, preso a um código e dele transcendente. E de certa forma reconhecermos as figuras obscuras do letrista, do músico e dos homens e mulheres que ao longo dos tempos a cantaram, alguns dos quais já só os especialistas recordam.  Eles interpretam uma canção maravilhosa, que já foi muito ouvida e faz agora parte de um determinado cânone. Um fado, um género de música local que se tornou justamente património da humanidade. As expressões que a câmara capta revelam que estes músicos têm algo em comum e que sabem que o têm. Mas que intimamente acreditam que nos estão a incluir nessa comunhão.

Yamandu Costa toca sozinho 27 segundos, momento em que António Zambujo começa a cantar, com a sua voz característica e o sotaque arrastado do Alentejo.

Eu Já Não Sei é um fado antigo, referido como “fazendo parte do repertório de Carlos Ramos (1907-1964)”, da autoria de Domingos Gonçalves Costa (1913-1984) e Carlos Rocha. Fala do amor ausente, do sofrimento, da dúvida, da saudade, da incerteza. Tem onze quadras que alguns classificariam como um pouco ingénuas. Quatro começam e três terminam com a frase Eu já não sei. Duas repetem-se e uma fá-lo duas vezes, a concluir. Esquematicamente: 1,2,3,4,5,6,7,3,4,5,5.

Zambujo canta as primeiras, acompanhado apenas pelo violão de Yamandu. A câmara detém-se neles. O cantor tem as mãos cruzadas sobre a sua guitarra. No final da segunda quadra, ao 1 min 04 s de gravação, passam a tocar os dois. A câmara continua a focá-los. Parecem tocar para alguém. Não para nós, o publico virtual. Já vi Zambujo em palco, convidado de Ana Moura, nervoso ou falsamente nervoso, mas a cantar sozinho. Este fado, justamente. Entregue a si próprio. Como se não houvesse público, presencial ou virtual. Aqui, António Zambujo toca e canta para alguém que está presente no estúdio. Alguém que partilha a letra e a música, que aprecia melhor do que ninguém os milhares de pormenores de que esta é feita, as notas, os acordes, as repetições, as inflexões da voz, o trabalho de respeito e criação do violão. Ao 1 min 26 s, a câmara dá-nos um plano de conjunto, brevemente. Durando apenas seis segundos. E é então que vemos o baixista Ricardo Cruz e a cantora Roberta Sá. Roberta está sentada com um vestido ligeiro de cores claras e motivos azuis, um vestido juvenil e singelo como as meninas de Natal usavam no final dos anos 80. As mangas curtas são apertadas nos braços por elásticos, o decote redondo é cruzado por um fio que segura um medalhão. Está sentada, como todos, olha em frente para um ponto distante da câmara.  Zambujo continua, canta mais quadras e, quando acaba, a câmara volta a focar o conjunto e Roberta faz um movimento lento com as mãos, como faziam as senhoras que se sentavam com os joelhos juntos e esticavam levemente a saia que não precisava de ser composta, as mãos parando esquecidas na bainha. Tem uns sapatos antiquados de meio salto sem calcanhar e os pés juntam-se à frente numa anteversão discreta. Os olhos de Roberta encontram brevemente os de Zambujo, que dedilha a guitarra, acompanhando os acordes vibrantes de Yamandu. Ao rodar ligeiramente a cabeça para a direita, ele encontra os olhos de Roberta e sorri.  Cantava para ela, percebemos. Cantava para Yamandu, como se agradecesse e lhe quisesse dizer que estava à altura da sua música, que a canção e a forma como a interpretava mereciam a música incrível que ele inventara com o seu violão. E cantava para Roberta, esperando que Roberta entrasse, como se só nesse momento o fado se cumprisse e valesse totalmente a pena.

Aos 2 min 34 s, Roberta começa a cantar. Canta menos de 2 minutos. Fecha os olhos sombreados, algumas vezes. Tem sobrancelhas espessas e negras, que no início da juventude talvez se unissem. Quando canta,

Sinto o desejo
De me lançar nos teus braços

meneia a cabeça e António Zambujo morde o lábio inferior, quase até sangrar.

E ao abrir as vogais,

Tenho vontade
De te dizer frente a frente
Quanta saudade
Há do teu amor ausente

mostra uns magníficos dentes, tão brancos e certinhos que parecem todos incisivos.

Cantam 6 min 13 s , com Yamandu triunfal e jubilatório, Cruz discreto, Zambujo em estado de graça e Roberta Sá tão leve e imponderável como se fosse ela a convidada,  um anjo de passagem.

Eles não sabem. Mas a canção e a arte deles, como diz a letra do fado, ajuda-nos a sofrer melhor.