A representação teológica do feminino
faz-se através de duas figuras principais e quase antagónicas: Eva e Maria. Eva é pecado, tentação, sensualidade; Maria é pureza, castidade, maternidade. Eva é o corpo feminino que Deus criou, Maria a que permitiu que Deus ganhasse corpo em Cristo. Eva é perdição, Maria salvação. Eva deu à luz um assassino que matou o próprio irmão, Maria deu à luz o Messias. Deus proibiu Eva de comer o fruto da árvore do conhecimento, mas ela cedeu à curiosidade, descobriu-lhe o sabor e, com isso, o saber — foi bênção e castigo. Deus pediu a Maria que carregasse o Messias, estando apaixonada por outro homem, missão a que ela acedeu, carregando um filho que entregaria para ser crucificado — foi bênção e castigo. Os dois modelos da feminilidade cristã, entre pecado original e conceção sem pecado, sendo quase opostos, têm em comum um corpo de mulher, capaz de prazer e privação, de gerar vida, de amamentar, sangrar e secar, de sofrer e se regenerar. Um corpo que é bênção e castigo.
A Bíblia conta-nos a história assim: primeiro, Deus fez o Céu e a Terra. Depois, era preciso haver quem cultivasse o solo. Então, Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vivente. O homem é criado para ser útil, feito a partir da terra fértil, a mesma que dá o fruto, aquela sobre a qual caminhamos, pó de onde surgimos e aonde voltaremos. O homem é do mundo, porque foi feito com a terra dele. Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”. Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus Ele o criou. Depois, Deus disse: não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe seja semelhante. Então, também a partir do solo, Deus criou todas as feras e todas as aves, para fazerem companhia ao homem. Apresentou-lhas, deixou que ele lhes escolhesse o nome. Mas em nenhuma o homem encontrou uma auxiliar que lhe fosse semelhante. Deus entorpeceu o homem, retirou-lhe uma costela e fez nascer carne no lugar do osso em falta. A partir dessa costela, Deus moldou a mulher. Então o homem exclamou: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher porque foi tirada do homem!”. Assim nasceu a mulher, contada pelo discurso judaico-cristão, criada a partir do osso de um homem feito com argila da terra. Sem direito a sopro de vida nas narinas, nascida para auxiliar um ser vivente. O mundo vem do útero da mulher, mas a mulher veio da costela do homem. E assim se fez. Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: foi o sexto dia.
Ao sétimo dia, Deus descansou, deixando o Jardim do Éden entregue a Adão e Eva para que o tomassem por inteiro, com todas as espécies de árvores formosas de ver e boas para comer — todas, menos a árvore do conhecimento do bem e do mal, que era proibida. O resto da história tem alimentado, ao longo de séculos, a fantasia sobre a manha e os ardis femininos: Eva deixa-se tentar pela serpente e tenta o marido para que ele peque também. A mulher que me deste por companheira deu-me o fruto, e eu comi. Ambos são expulsos do Paraíso, condenando a Humanidade a uma eternidade de provações, desafios e tormentos, na Terra. O homem foi condenado à mortalidade e ao trabalho; o castigo da mulher foi muito maior: entre dores, darás à luz os teus filhos; a paixão vai arrastar-te para o marido, e ele te dominará. Eva acabaria por dar à luz dois filhos: Caim e Abel. Caim matou o irmão.
Depois, passaram muitos séculos e muitas mulheres. Sara, mulher de Abraão, enfrentou a esterilidade, concebendo miraculosamente em idade muito avançada. Ana, mãe de Samuel, igualmente amaldiçoada com o castigo da infertilidade — o único que se sobrepõe às dores de parto. Ester, que fazendo uso da sua beleza suprema seduz o Rei e, assim, salva o povo judeu. Lídia, uma mulher empresária, dona do seu próprio negócio e da sua casa. Maria Madalena, para uns símbolo de pecado, para outros de adoração a Cristo. E Maria, o modelo, por oposição a Eva. Outra mãe, para nos salvar da que nos condenou. Uma Mãe de Misericórdia, Maria cheia de graça, bendita entre as mulheres, capaz de salvar os degredados filhos de Eva, como reza a “Salve, Rainha”. Um ventre bendito, primeira casa do Messias. Uma filha de Eva convertida.
Eva é a mulher de Adão e a primeira mulher do mundo, criada por Deus porque Adão precisava de uma companheira. Feita a partir do homem — feita para ele – foi tentada pela serpente, ousou comer a maçã que lhe daria o conhecimento do bem e do mal, condenando toda a humanidade ao sofrimento. Maria é a representação oposta: pura, casta, abnegada. Quando o Anjo Gabriel a visita para lhe dizer que foi escolhida para ser a mãe do filho de Deus aceita, altruísta e resignada, a missão que não tinha pedido e que punha em causa os desejos que tinha para a sua própria vida. O discurso teológico sobre o feminino apresenta-nos estes dois modelos: Eva, como representação da mulher, Maria, como ideal.
Nunca saberemos quanto do mundo se faz de símbolos e representações, mas não é difícil relacionar muita da complexidade feminina com este ancestral confronto entre demoníaco e divino, desejo e contenção, tentação e virtude. Deus disse: “que a Terra produza seres vivos conforme a espécie de cada um: animais domésticos, répteis e feras, cada um conforme à sua espécie”. E assim se fez. Deus fez as feras da Terra, cada uma conforme a sua espécie; os animais domésticos, cada um conforme a sua espécie; e os répteis do solo, cada um conforme a sua espécie. Depois fez Eva e, com ela, a mulher. Depois, Maria e, com ela, a mulher: doméstica e fera, rutura e recato, entre o pecado original e a conceção sem pecado — em todas as peles conforme à sua espécie. Destas duas mães, uma pecadora e uma santa, herdámos a nossa humanidade, na forma de um corpo que é osso de homem, carne de mulher, argila da terra e sopro do céu. Um corpo que é bênção e castigo.