Número 4

15 de Maio de 2021

O DESPLANTE

Ficções

FREDERICO MARTINHO

Entre ruas e becos descobrimos realidades que encontramos mais no cinema e menos nas televisões, mais na literatura do que nos jornais. Andava eu já no escuro da noite de tripé assente na calçada, quando sou abordado por um homem bêbado. “Desculpa, eu sei que não estou bem, mas queres ouvir uma história?” Não escondo que olhei em volta e calculei as minhas hipóteses enquanto ele me explicava ser o único que limpa o lavadouro abandonado pela comunidade nas traseiras da casas, de onde se ouvia a regular queda das águas e o seu eco macabro. A rua é uma fenda erigida em muros de pedra com vários metros de altura, vestidos de musgo. Lá em cima estão janelas habitadas em paredes e telhados de chapa. “Vou tratar-te por tu por seres mais novo, não leves a mal. Já foste para lá daquele edifício? Há uma cidade antes e uma cidade depois da Mota-Engil”. Aponta em direcção ao rio sobre o qual se debruça um condomínio. Este antes e depois é espacial e cronológico. O homem cambaleia. Veio de um convívio. “O que queres com a fotografia?” Respondo que procuro as cidades que estão esquecidas dentro das cidades, subestimando a interpretação do homem. “Sabes o que está atrás desse muro?” Desconheço. “Esterco. Nojo.” Iluminado pelo amarelo fraco da noite ergue-se atrás do muro uma ruína de betão com vários andares onde se adivinha todo o tipo de degradação. “Tudo isso pertence à EDP e ninguém faz nada.” Segue-se um silêncio colado na decadência. Finalmente coincidimos num ponto comum de entendimento quando olhámos, calados, o alcatrão que se colava ao céu. Não existem momentos de realidade e outros de ficção. Vitalina Varela é o exemplo disso. Existem, sim, contendas de narrativas que vão adormecendo ou despertando a nossa percepção. Acredito muito nos escritores que se desdobram em visões fantasiosas do mundo e nada em Hayek e a sua fé na auto-regulação pelo caos — se a natureza fosse assim tão confortável, a arquitectura não teria sido inventada, escreveu Wilde. Nem a Segurança Social, o cinema ou o álcool, acrescento eu, colocando a minha mão no seu ombro. “Eu tenho os meus estudos. Sou o revolucionário aqui do bairro.” É ténue a barreira entre a bebedeira e o sonho. Comove-me o desânimo do homem com o desleixo do lugar onde vive e a lucidez com que intui uma perspectiva política do território. Ele insiste na conversa esperando algo de mim. Sobrestima-me. Não consigo uma resposta à altura da sua agravada expectativa. Agora, com tempo, provavelmente lhe diria que na frustrante dificuldade da mudança talvez não seja assim tão irrelevante sermos, os dois, essa lástima ébria que vigia as ruas como uma dor que alerta para a doença.

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